Relançado tratado que inaugurou anatomia moderna

Obra-prima de 1543 do médico Vesalius de Bruxelas ganha edição brasileira caprichada

 

Obra-prima do médico renascentista Andreas Vesalius de Bruxelas, o atlas de anatomia De Humani Corporis Fabrica acaba de ser relançado no Brasil em edição caprichada. Publicado originalmente em 1543, o livro assinalou o início da ciência e da pesquisa modernas baseadas na observação direta dos fenômenos. Embora ultrapassado pelas descobertas feitas nos últimos cinco séculos, esse atlas é considerado o marco inicial da anatomia moderna.

Detalhe da capa de De Humani Corporis Fabrica . Nas ilustrações do livro, as poses dos corpos dissecados lembram mais a vida que a morte; em alguns casos, o pano de fundo retrata paisagens naturais ou cidades italianas

Vesalius nasceu em Bruxelas, a 31 de dezembro de 1514, em uma família de médicos. Aos 19 anos, partiu para a Universidade de Paris, onde iniciou sua formação em medicina. Naquela época, o estudo da medicina era calcado nas concepções anatômicas e fisiológicas do médico greco-romano Galeno (129-199 d.C.), as únicas existentes até então, baseadas na dissecação de animais.

Na Escola de Medicina de Paris, dissecações do corpo humano não eram freqüentes: estima-se que o jovem Vesalius tenha assistido a no máximo quatro delas nos três anos que permaneceu na cidade. As poucas aulas práticas de anatomia não satisfizeram o curioso estudante, que passou a obter ossos humanos no local para onde eram levados os corpos dos criminosos executados na cidade e no cemitério onde eram sepultadas vítimas de pragas.

 

À esq., o único retrato disponível de Vesalius; à dir., a página de rosto da 1a edição de seu atlas, que retrata uma de suas concorridas aulas, durante as quais ele dissecava cadáveres humanos e demonstrava suas teorias

Em 1537 Vesalius partiu para a Itália, onde havia melhores oportunidades para seus estudos de anatomia. Na Universidade de Pádua, escola de espírito progressista e centro da renascença científica, foi graduado doutor em medicina e nomeado professor de cirurgia aos 23 anos.

 

Para ilustrar suas aulas e defender seus argumentos, Vesalius passou a usar grandes desenhos anatômicos, executados por ele próprio. Em 1538, seis dos desenhos foram editados com o nome de Tabulae Sex , publicação que teve sucesso imediato — apenas duas séries completas sobreviveram até os dias de hoje; as demais foram desgastadas pelo manuseio. Essas xilogravuras estabeleceram um novo critério para a ilustração na biologia e para as artes gráficas.

Ao publicar as Tabulae Sex , Vesalius já manifestava o desejo de produzir um grande tratado anatômico. Em 1543 realizou seu intuito com a edição do De Humani Corporis Fabrica e do Epitome , volume com textos que explicavam as ilustrações. O livro é dividido em sete partes: ossos, músculos, sistema circulatório, sistema nervoso, abdômen, tórax e cérebro. A obra era dedicada não apenas a médicos, mas também a artistas, já que, segundo a estética renascentista, uma obra de arte deveria representar fielmente os fenômenos naturais.

 

Ilustrações do livro para o esqueleto, músculos e sistema nervoso. As xilogravuras, inspiradas nas dissecações realizadas por Vesalius, foram supostamente criadas na oficina do mestre-pintor Ticiano.

Vesalius morreu em 1564, provavelmente em um naufrágio, na volta de uma peregrinação à Terra Santa. Graças a sua obra, é hoje incluído entre os grandes descobridores da história da medicina, como Hipócrates e Galeno. É considerado o ‘pai da anatomia moderna’.

 

Além do De Humani Corporis Fabrica e do Epitome , a nova edição brasileira traz também as Tabulae Sex , a Carta da Vinissecção (um estudo anterior do sistema circulatório) e uma breve biografia de Vesalius.

 

De Humani Corporis Fabrica / Epitome / Tabulae Sex
Andrea Vesalius de Bruxelas (anotações e tradução do latim:
J.B. DeC.M. Saunders e Charles D. O’Malley)
(tradução para o português: Pedro Carlos Piantino Lemos
e Maria Cristina Vilhena Carnevale)
São Paulo/Campinas, 2003, Ateliê Editorial,
Imprensa Oficial do Estado, Editora Unicamp
268 páginas – R$ 120

Vesalius foi o inventor da ‘maceração em água quente’,técnica usada para separar restos de carne dos ossos, e comprovadamentemontou pelo menos dois esqueletos articulados. Veja como ele descreve aobtenção do primeiro deles, em Louvain, na Bélgica:

 

“Enquanto andava à procura deossos pelas estradas rurais, onde eventualmente, para grandeconveniência dos estudantes, todos os indivíduos executados costumamser depostos, deparei-me com um cadáver ressecado. Os ossos estavamtotalmente expostos, mantendo-se unidos apenas pelos ligamentos, etinham sido preservadas somente a origem e a inserção dos músculos.Escalei o poste e destaquei o fêmur do osso ilíaco. Quando puxei a peçacom força, a omoplata, os braços e as mãos também se destacaram, emborafaltassem os dedos de uma das mãos, as duas rótulas e um dos pés.Depois de trazer secretamente para casa as pernas e os braços e apóssucessivas idas e vindas (deixei para trás a cabeça e todo o tronco),permaneci durante quase toda a noite fora dos limites da cidade a fimde conseguir pegar o tórax, que se encontrava firmemente preso por umacorrente. Eu ardia num desejo tão grande que não tive medo de roubar,no meio da noite, aquilo que eu tanto queria. No dia seguintetransportei pouco a pouco os ossos para casa por outro portão da cidadee montei aquele esqueleto que está montado em Louvain.”

esalius foi o inventor da ‘maceração em água quente’,técnica usada para separar restos de carne dos ossos, e comprovadamentemontou pelo menos dois esqueletos articulados. Veja como ele descreve aobtenção do primeiro deles, em Louvain, na Bélgica:

 

“Enquanto andava à procura deossos pelas estradas rurais, onde eventualmente, para grandeconveniência dos estudantes, todos os indivíduos executados costumamser depostos, deparei-me com um cadáver ressecado. Os ossos estavamtotalmente expostos, mantendo-se unidos apenas pelos ligamentos, etinham sido preservadas somente a origem e a inserção dos músculos.Escalei o poste e destaquei o fêmur do osso ilíaco. Quando puxei a peçacom força, a omoplata, os braços e as mãos também se destacaram, emborafaltassem os dedos de uma das mãos, as duas rótulas e um dos pés.Depois de trazer secretamente para casa as pernas e os braços e apóssucessivas idas e vindas (deixei para trás a cabeça e todo o tronco),permaneci durante quase toda a noite fora dos limites da cidade a fimde conseguir pegar o tórax, que se encontrava firmemente preso por umacorrente. Eu ardia num desejo tão grande que não tive medo de roubar,no meio da noite, aquilo que eu tanto queria. No dia seguintetransportei pouco a pouco os ossos para casa por outro portão da cidadee montei aquele esqueleto que está montado em Louvain.”


Adriana Melo
Ciência Hoje on-line
04/04/03