Justiça militar: entre o constitucional e a exceção

Justiça militar: entre o constitucional e a exceção

Como o autoritarismo pode conviver com instituições e fachadas democráticas? A pergunta não é trivial. Somos levados a acreditar que regimes de exceção, como os Estados totalitários fascistas, a União Soviética stalinista ou as ditaduras militares de segurança nacional da América Latina se sustentavam apenas sobre bases repressivas. Mas geralmente os governos reivindicam uma base “legal”, até mesmo para suas ações ilegais, de modo a justificar sua razoabilidade e justiça. O texto Justiça militar: entre o constitucional e a exceção, de Carlos Fico, reflete justamente sobre isso, a partir da discussão sobre os julgamentos realizados pelo Superior Tribunal Militar durante o período em que o Brasil viveu uma ditadura militar.

Possibilidades de abordagem

  • Explicar a demanda política de acesso a fontes históricas como fundamental para se garantir o direito à verdade e à reparação, bases de um Estado Democrático de Direito.
  • Contextualizar a luta por verdade, justiça e reparação no processo de redemocratização dos Estados latino-americanos após as ditaduras militares, diferenciando casos exemplares como a Argentina (que teve uma ampla política de apuração dos crimes da ditadura e debate sobre a memória desse período) e o Brasil, que só teve uma Comissão da Verdade instalada em 2012 e jamais puniu os indivíduos acusados de violações de direitos humanos nesse processo.
  • Analisar como a atual recorrência de discursos negacionistas se relaciona à dificuldade de se investigar documentalmente as denúncias de violações de direitos humanos no contexto da ditadura militar brasileira.
  • Discutir a presença de instituições democráticas em regimes autoritários, como tribunais, Constituições e eleições periódicas, na tentativa de formular bases legais e institucionais para as iniciativas do governo.

Proposta de atividade:

Indicar a leitura do texto da Ciência Hoje em casa, ou em um momento inicial da aula, caso haja tempo. Em seguida, propor um debate sobre a importância de se ter acesso a fontes históricas para poder revelar elementos da História que permanecem ocultos intencional ou não intencionalmente. O mote para o debate pode ser a divulgação, em setembro de 2022, de que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos deseja se desfazer de um extenso material com memórias da ditadura (ver reportagem na bibliografia). Em seguida, contextualizar o atraso com que o Brasil instaurou uma Comissão da Verdade para investigar os crimes da ditadura (ver tabela relativa às comissões da verdade latino-americanas).

Relacionar a instalação tardia da Comissão Nacional da Verdade à recorrência de discursos negacionistas da ditadura militar e de seus crimes, abordando as acusações que sofreu a jornalista Miriam Leitão, colocando em dúvidas as denúncias que fez quanto às torturas que sofreu. A partir daí, exibir trechos selecionados das gravações do STM disponibilizadas pelo pesquisador Carlos Fico para debater, com os alunos, como fontes produzidas pelo próprio regime de exceção podem ajudar a embasar as denúncias feitas contra ele (ver link com as gravações na bibliografia).

Por fim, propor uma reflexão sobre a existência do Superior Tribunal Militar, em si, bem como de outras ferramentas institucionais que transmitem uma impressão de normalidade democrática ao regime, como as Constituições de 1967/1969 e a realização de eleições (ainda que, na maior parte do tempo, sob o bipartidarismo e de forma indireta para alguns cargos). Esse debate deve abordar ao menos três elementos-chave: (1) a necessidade de se garantir uma boa imagem ao Brasil internacionalmente; (2) a necessidade de legitimar o regime internamente, sobretudo junto a grupos alinhados a alas conservadoras, mas com convicções democráticas ou mais moderadas; (3) as demandas de indivíduos de dentro do próprio regime de que o Estado não poderia “fazer tudo”, como fica claro no depoimento do general Augusto Fragoso (04’:42”-06’:29” do áudio na bibliografia), em que este afirma que, como representante do Exército, experimentou constrangimento ao ver suas instituições acusadas sem serem apuradas devidamente, e defendeu que o Exército e as demais forças armadas deveriam “rapidamente se recolher a afazeres profissionais”.

Recursos utilizados:

  • Versão impressa ou disponibilizada digital do texto Justiça militar: entre o constitucional e a exceção
  • Projeção de imagens relativas às lutas por justiça e reparação nos Estados latino-americanos e da tabela com as informações sobre as comissões da verdade, por meio de datashow
  • Reprodução dos áudios do STM, por meio de aparelho de som

Governo se desfaz de 17 mil obras do acervo da memória da ditadura. Reportagem do site Metropoles, 19/09/2022, disponível em: https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/governo-se-desfaz-de-17-mil-de-obras-do-acervo-da-memoria-da-ditadura. 

Ministros militares falam sobre tortura: ‘eles apanham mesmo’. Disponibilização de áudios do STM, realizado pelo jornal O Globo, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nWbIIW8z7tU. 

Áudios do Superior Tribunal Militar provam tortura na ditadura. Coluna da Jornalista Miriam Leitão no jornal O Globo, 17/04/2022, disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/audios-do-superior-tribunal-militar-provam-tortura-na-ditadura.html.  

‘Resolvi entregar esses áudios para Míriam Leitão depois da ofensa que ela sofreu’. Reportagem do site CBN, 18/04/2022, disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/372949/resolvi-entregar-esses-audios-para-miriam-leitao-d.htm.  

Historiador diz que ministros do STM faziam piadas com vítimas de tortura. Reportagem do site UOL, 18/04/2022, disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/04/18/entrevista-historiador-carlos-fico-gravacoes-stm.htm