Serpentes atlânticas

A mata atlântica, que já se estendeu por mais de um milhão de quilômetros quadrados do Piauí ao Rio Grande do Sul, hoje se encontra completamente fragmentada, reduzida a 16% de sua exuberância original, de acordo com as estimativas otimistas. Ainda assim, essa floresta mantém parte de sua grandiosidade, abrigando uma rica biodiversidade, da qual uma fração significativa é endêmica, ou seja, não existe em outro lugar.

A vegetação da mata atlântica varia ao longo de sua extensão devido à presença de climas variados, com regimes de temperatura e precipitação diferentes em cada região. Portanto, é de se esperar que a fauna que nela habita também apresente variações.

Para entender melhor como a fauna está organizada em uma região tão ampla e diversa como a mata atlântica, é necessário aplicar uma técnica conhecida como regionalização. Por meio dela, é possível dividir uma região geográfica em porções menores com base nos grupos de espécies de cada área.

Foram compiladas 218 localidades, que juntas contabilizaram 198 espécies de serpentes

Em um estudo recente, analisamos quais processos causariam a regionalização das serpentes na mata atlântica. Procuramos informações sobre as serpentes da mata atlântica na literatura especializada e consultamos dezenas de especialistas que colaboraram com dados valiosos sobre estudos que conduziram.

Ao final, foram compiladas 218 localidades, que juntas contabilizaram 198 espécies de serpentes. Esse número sobe para 219 espécies se considerarmos algumas serpentes que não foram encontradas pelos inventários compilados – espécies endêmicas de ilhas, como a jararaca-ilhoa (Bothrops insularis) ou muito raras, como a jiboia-de-Cropan (Corallus cropanii).


A caninana (Spilotes pullatus) pode ser encontrada ao longo de todo o bioma da mata atlântica. (foto: Antônio Bordignon)

Os resultados encontrados mostram que as comunidades de serpentes na mata atlântica podem ser divididas em seis sub-regiões. Embora algumas espécies sejam observadas por quase todo o bioma, como a cobra-cipó (Philodryas olfersii) e a caninana (Spilotes pullatus), há serpentes que só vivem no norte da mata atlântica, como a corredeira-da-mata (Dendrophidion atlantica) e outras encontradas apenas no sul, como a nariguda-da-praia (Xenodon dorbignyi). Há também espécies típicas de outros biomas que podem ser encontradas no oeste da mata atlântica, como a cobra-d’água-de-Herrmann (Hydrodynastes bicinctus).

A pesquisa também indicou que a organização geográfica dessas seis sub-regiões pode estar ligada ao clima, especialmente às variações na temperatura e na quantidade de chuvas ao longo da mata atlântica. Serpentes são animais ectotérmicos e, como tal, dependem das condições ambientais para regular a temperatura do corpo. Em regiões tropicais, a dificuldade das serpentes não é se manter aquecidas, mas refrigeradas. Por isso, a quantidade de chuvas também é importante, pois serpentes bem hidratadas estariam menos sujeitas ao superaquecimento.

Outro achado interessante é que a variação climática ao longo dos últimos milênios também ajuda a explicar como as diferentes espécies de serpentes se distribuem na mata atlântica nos dias de hoje. Áreas com relevo complexo, como regiões serranas, teriam sido menos afetadas pelas mudanças ambientais no passado, possuindo maior estabilidade climática e possibilitando a sobrevivência histórica de espécies adaptadas a esse tipo de hábitat, como a muçurana-da-serra (Mussurana montana).

A regionalização das serpentes da mata atlântica é um passo importante para compreendermos melhor vários aspectos da biologia desses animais. Se fatores climáticos como a temperatura e a chuva influenciam a distribuição e a sobrevivência das serpentes, o que poderá acontecer se o cenário de mudanças climáticas sob influência humana não for controlado? Pesquisas que busquem responder essas e outras perguntas poderão auxiliar no planejamento de estratégias para a conservação dessa exuberante floresta tropical e de sua rica biodiversidade.

 

Henrique Caldeira Costa
Departamento de Zoologia
Universidade Federal de Minas Gerais
Antônio Jorge S. Argôlo
Departamento de Ciências Biológicas
Universidade Estadual de Santa Cruz
Mario Ribeiro Moura
Instituto de Biologia
Universidade Federal de Uberlândia