Sim, nós temos pulmão

Celacantos têm pulmão – mas não é que ele sirva para alguma coisa, pelo menos nas espécies atuais. A informação, confirmada por uma equipe de cientistas brasileiros e franceses, ajuda a compreender como eram, no passado, os peixes do grupo dos sarcopterígios, considerados ancestrais de anfíbios e vertebrados terrestres – possivelmente, os celacantos da pré-história usavam o pulmão para complementar a respiração pelas brânquias, em ambientes com baixa disponibilidade de oxigênio na água.

A descoberta foi feita a partir do estudo de Latimeria chalumnae, uma das duas espécies de celacantos que ainda vivem na natureza. Para analisá-la, os cientistas selecionaram exemplares preservados em coleções científicas: três embriões em estágios diferentes do desenvolvimento, além de um animal jovem e três adultos. Embora tenham dissecado os peixes adultos para a análise, os pesquisadores não fizeram o mesmo com os embriões – afinal, trata-se de um material raro e que não poderia ser danificado. Para desvendá-lo, a equipe usou uma técnica conhecida como tomografia de raio X e, a partir dela, criou uma série de reconstruções em 3D que ilustram como o pulmão de desenvolve. O estudo, coordenado pelo paleoictiólogo Paulo Brito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi publicado hoje (15/09) na Nature Communications.

Nos primeiros estágios, o embrião tem um pulmão relativamente bem desenvolvido e potencialmente funcional. Mais tarde, o desenvolvimento do órgão é desacelerado.

Embora os embriões apresentem, nos primeiros estágios, um pulmão relativamente bem desenvolvido e potencialmente funcional, ao longo de seu crescimento o desenvolvimento do órgão é desacelerado. Em embriões maiores, filhotes e adultos, o pulmão perde a função e torna-se apenas um órgão vestigial, isto é, não auxilia na absorção de oxigênio. L. chalumnae respira, como a maioria dos outros peixes, apenas pelas guelras.

Por outro lado, o tamanho proporcionalmente reduzido das brânquias e o grosso tecido que separa a água do sangue desses peixes sugere que celacantos fósseis poderiam ter uma capacidade reduzida de captar oxigênio do ambiente, o que requereria uma estratégia adicional de respiração – daí a importância do pulmão nos celacantos fósseis, que viviam em águas mais superficiais. “Os celacantos pré-históricos possuíam um pulmão maior e muito provavelmente funcional”, destaca Brito. Durante a Era Mesozoica, quando os celacantos se adaptaram para viver em maiores profundidades, o pulmão teria perdido sua utilidade.

Pulmão dos celacantos: estágios de desenvolvimento
Reconstruções tridimensionais do aparelho pulmonar de ‘L. chalumnae’ em diferentes estágios do desenvolvimento. (imagem: Cupello et al. Nature Communications)

Outra característica observada em L. chalumnae que remete ao passado evolutivo da espécie é a presença de placas ósseas que protegem o órgão. “Em espécies fósseis, essas placas circundavam o pulmão e tinham uma função semelhante à das nossas costelas: evitar compressão do órgão”, explica a também paleoictióloga Camila Cupello, que desenvolveu a pesquisa durante seu doutorado, sob a orientação de Brito. “Nos celacantos atuais, essas placas são remanescentes, não têm mais função. Mas foram importantes para que pudéssemos estabelecer a relação entre o pulmão do peixe atual e os fósseis”, conta.

Uma boia em alto mar

Outra curiosidade anunciada pela equipe diz respeito a um órgão formado apenas por gordura, posicionado próximo ao pulmão do celacanto. Embora já tivesse sido observado em outros estudos, esse órgão havia sido erroneamente classificado como parte do sistema pulmonar. Agora, sabe-se que ele é independente e está relacionado ao controle da flutuação do animal, fundamental para sua adaptação à vida em grandes profundidades.

“O órgão de gordura nos celacantos tem uma função análoga à do fígado gorduroso de alguns tubarões”

“O órgão de gordura nos celacantos tem uma função análoga à do fígado gorduroso de alguns tubarões e de estruturas presentes no cérebro de alguns cetáceos”, esclarece Cupello. Como trata-se de tecido mole e, portanto, raramente preservado em registros fósseis, é difícil saber se os celacantos do passado possuíam estrutura semelhante.

 

Longa e complexa história evolutiva

Os fósseis mais antigos de celacantos datam do período Devoniano (aproximadamente 410 milhões de anos atrás). Por muito tempo, os cientistas pensaram se tratar de animais extintos há longa data – pela falta de fósseis semelhantes com datação posterior ao período Cretáceo (entre 65 e 145 milhões de anos atrás), acreditava-se que os celacantos haviam desaparecido nessa época. A história teve que ser revista, no entanto, em 1938, com a descoberta de Latimeria chalumnae na África do Sul.

Desde então, os celacantos atuais vêm sendo tratados como ‘fósseis vivos’, pois apresentariam características muito semelhantes a animais pré-históricos. No entanto, Brito considera esse conceito equivocado. “É uma expressão muito coloquial, que faz referência ao jeitão do animal, muito parecido com o fóssil”, avalia. “Mas trabalhos atuais mostram que há muitas diferenças entre os celacantos atuais e as espécies pré-históricas. É como comparar um Fusca 1936 e um Fusca 1980: são dois carros semelhantes no exterior, mas muito diferentes, por exemplo, em relação ao motor. Entre as décadas de 1930 e 80, houve um processo de evolução dos motores. Da mesma forma, nos seres vivos, a evolução continua acontecendo. Antes de 1938, a última espécie conhecida de celacantos datava de 70 milhões de anos – nesse período houve muitas mudanças”.

‘Latimeria chalumnae’
‘Latimeria chalumnae’ vive entre 110 e 400 metros de profundidade em ambientes rochosos. O animal, que pode chegar a dois metros de comprimento, é um peixe ósseo e ovovivíparo, isto é, passa seus estágios iniciais de desenvolvimento em ovos no interior do corpo da mãe. (foto: Laurent Ballesta / www.andromede-ocean.com / www.blancpain-ocean-commitment.com)

Se, atualmente, são conhecidas apenas duas espécies de celacantos – além de L. chalumnae, Latimeria menadoensis, também encontrado no oceano Índico, mais próximo à Indonésia –, no passado este era um grupo diverso, que contava com mais de 130 espécies distribuídas em todo o mundo, e não apenas nos oceanos, mas também em ambientes de água doce, como rios e lagos, e salobra, como estuários.

Uma das principais características desses animais é a presença de dois pares de nadadeiras carnosas nas regiões peitoral e pélvica, cuja estrutura óssea e muscular lembra os membros de tetrápodes – grupo de vertebrados terrestres que possuem quatro membros. Por isso, os cientistas acreditam que celacantos pré-históricos estariam entre os parentes próximos dos primeiros vertebrados a conquistarem o ambiente terrestre.

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Catarina Chagas
Instituto Ciência Hoje/ RJ