SUS para chinês ver

Três bilhões de cirurgias e procedimentos ambulatoriais por ano, 500 milhões de consultas médicas, 1 milhão de entradas em hospitais, 30 milhões de procedimentos oncológicos, o maior programa público de transplante de órgãos do mundo. Esses números grandiosos foram apresentados a pesquisadores e tomadores de decisão estrangeiros para ilustrar o sucesso do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil.

Os dados foram o ponto alto da palestra do diretor de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde Jailson Correa durante o II Simpósio sobre Pesquisa em Sistemas de Saúde, evento que reuniu mais de 1.800 pesquisadores da área no início do mês em Beijing, na China. 

Além da magnitude do sistema, Correa destacou o impacto do SUS no aumento da qualidade de vida dos brasileiros, como a redução de 47% da taxa de mortalidade infantil na última década e o crescimento da expectativa de vida média de 67 anos em 1990, para 73,4 em 2012. O programa federal de distribuição gratuita de medicamentos para hipertensão, diabetes e asma e a implantação de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) foram citadas como algumas das iniciativas responsáveis pelas melhorias dos indicadores. 

A plateia na China aplaudiu a qualidade do sistema brasileiro, mas aqui sabe-se que existe um fosso entre a realidade dos números e da prática. Longas filas e espera de até um ano, desigualdade na distribuição de médicos, emergências lotadas, falta de equipamentos são alguns dos problemas enfrentados no SUS. A CH On-line ouviu Jailson Correa sobre essas questões após sua apresentação no seminário.

CH On-line: Na sua palestra, o senhor fez um balanço muito positivo do SUS, atribuindo ao sistema, por exemplo, a queda da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida no Brasil. Num momento em que a economia do país cresce, é possível afirmar que a melhoria desses e de outros índices se deve exclusivamente ao SUS?
Jailson Correa
: Temos que colocar os dados em contexto. O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema universal de cobertura de saúde. É óbvio que, como cidadãos brasileiros, percebemos que nosso sistema de saúde está longe de ser ideal. Há dificuldades como filas e problemas no atendimento de emergência. Mas se você fizer uma comparação rápida com outros países do mundo com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil, verá que estamos anos-luz na frente.

“O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema universal de cobertura de saúde”

É importante dizer isso, porque, no Brasil, não temos essa percepção comparativa. As melhorias dos indicadores que tivemos nos últimos anos, de fato, podem ser atribuídas a uma série de conjunturas, mas, com certeza, a existência de um sistema único organizado que dá acesso a medicamentos é parte desse mosaico de elementos que fizeram com que nossos indicadores melhorassem. Sem dúvidas, o nosso programa de vacinação é importante para a queda da mortalidade infantil, e isso é SUS. O nosso programa de atenção à saúde no momento do parto também é SUS e também tem reflexos nesse índice.

O senhor citou o problema das emergências lotadas, uma das principais queixas dos usuários do SUS. Como avalia essa questão? 
A superlotação das grandes emergências se dá muitas vezes porque o acesso à atenção primária e mesmo à unidade intermediária, como a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), não resolve o problema do indivíduo. Então ele vai e lota uma grande emergência, que deixa de focar as situações de trauma e tem que dar conta de um atendimento que poderia ser feito em outro nível. Ainda é preciso organizar a rede para que o atendimento seja adequado às necessidades da população.

O senhor apontou em sua apresentação as UPAs como grande avanço, mas diz agora que as pessoas ainda não recorrem a elas de maneira correta. Como conciliar esse tipo de investimento de pronto atendimento com a atenção primária e a prevenção? 
Não podemos fazer só uma coisa… Em um país de dimensões continentais como o Brasil, um serviço de atenção primária não é um desafio simples. É claro que esse atendimento precisa ser qualificado e essa rede precisa estar em todo o país. Mas existem regiões periféricas, chamadas vazios assistenciais, em que é difícil manter, por exemplo, uma equipe de saúde da família, porque são áreas onde predomina a violência ou de difícil acesso. 

Por outro lado, nossa história de atenção primária é de poucas décadas. No Brasil, não havia profissionais formados para trabalhar nesse setor até pouco tempo atrás e os primeiros profissionais que migraram para essa função não tinham um treinamento específico para isso. É uma construção que temos que melhorar com o tempo. Hoje, o sistema de avaliação de qualidade e incentivo para as equipes de saúde da família é um elemento importante e, além disso, temos o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tem previsto um importante investimento nessas infraestruturas das unidades de saúde. São muitas frentes necessárias e, embora a gente saiba que a lógica do sistema deveria funcionar a partir da atenção primária, é preciso pensar no Brasil como um todo. 

SUS para chinês ver
Apresentação ressaltou as conquistas e a magnitude do SUS, mas deixou de lado suas falhas. (imagem: reprodução)


Além das emergências lotadas e incipiência do serviço de atenção primária, o SUS tem outras fragilidades, como a falta de equipamentos e a longa espera para determinados tipos de tratamento. O que estaria por trás dessas falhas? Seria falta de orçamento? Deficiência de gestão?
O orçamento é uma questão e a gestão também. Para que as necessidades de saúde da população brasileira sejam atendidas, o financiamento do setor precisa ser encarado como uma prioridade. O subfinanciamento do sistema de saúde é, em parte, razão dos problemas que vivemos hoje. Por outro lado, uma gestão mais eficiente e inteligente, uma locação de recursos baseada na pesquisa e na informação faz parte da equação. Mas você nunca terá uma resultante dessa equação que seja altamente positiva se o elemento financiamento não estiver resolvido. Algo que preocupa os brasileiros que saem da pobreza e vão para a classe média é ter um plano de saúde privado e isso tem um lado positivo, mas também é um risco, pois pode acabar enfraquecendo a importância que o sistema de saúde público tem para a sociedade brasileira. 

“Ter um plano de saúde privado tem um lado positivo, mas também é um risco, pois pode acabar enfraquecendo a importância do sistema de saúde público”

Mas se eles procuram um plano privado não é sinal de que o público já não está indo bem?
Eles procuram um plano privado muitas vezes em busca de uma fila menor, de situações melhores em relação à velocidade de atendimento. Mas, muitas vezes, quando você avalia a faixa de atendimento dos planos mais básicos, por exemplo, os seus usuários continuam sendo usuários também do SUS. Quando precisam de um exame mais sofisticado ou de um procedimento mais complexo, eventualmente uma hemodiálise ou transplante de rins, eles recorrem ao SUS. É importante lembrar que os planos privados têm papel complementar e o SUS tem papel basilar. Quando encarado como necessidade de todos os brasileiros, ajuda o próprio sistema a melhorar.

E qual a perspectiva de que as falhas que o SUS ainda tem venham a ser resolvidas em curto prazo?
É preciso ter paciência histórica, os problemas têm que ser enfrentados, temos que ter investimentos em recursos humanos e infraestrutura. Uma população, à medida que é desprovida de acesso ao sistema de saúde, clama por esse acesso. Uma vez o sistema de saúde presente, a população, exercendo sua cidadania, passa imediatamente a exigir mais qualidade e um perfil de atendimento adequado às suas necessidades.

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
O número “Três bilhões” no início do texto se refere a “cirurgias e procedimentos ambulatoriais” e não somente a “cirurgias” como dito anteriormente. (13/11/2012)