Tamanho 35, couro bovino, 5.500 anos

Ele tem 5.500 anos de idade e circulava pela Terra mil anos antes da Grande Pirâmide do Egito ser erguida, e 400 anos antes de o monumento de Stonehenge estar de pé. É feito a partir de um pedaço inteiro de couro bovino cru, costurado sobre o pé com uma tira de couro, e calçou um pé direito de cerca de 24,5 cm de comprimento nos anos de 3.500 a.C.

Segundo o estudo publicado na revista científica PLoS ONE, o ‘sapato de couro mais velho do mundo’ foi encontrado perto da província Vayotz Dzor, na Armênia, nas escavações realizadas na caverna Areni-1, próxima às fronteiras do país com Irã, Nackhichevanian e Turquia.

Localização de caverna onde sapato mais velho do mundo foi achado
O ponto vermelho no mapa indica a localização da caverna Areni-1 (imagem: University College Cork).

Até então, o sapato de couro mais antigo que se conhecia era do homem do gelo Ötzi, dos anos 3.300 a.C. Encontrado em 1991 nos Alpes de Ötztal, entre Áustria e Itália, o corpo mumificado de Ötzi trazia fragmentos do que um dia foram sapatos (de couro de veado e urso) e ‘meias’ (um forro protetor feito de grama).

Ambos os calçados pertencem ao Período Calcolítico (Idade de Bronze), mas o estado de conservação do novo objeto reforça a importância do achado.

O sapato foi encontrado em 2008, mas o estudo só foi divulgado nesta quarta-feira. Nesse espaço de tempo, vieram as constatações que tornaram a descoberta ainda mais surpreendente: inicialmente, a equipe estimava que o sapato tivesse entre 600 e 700 anos, devido ao seu bom estado de conservação. Porém, três análises do material a partir de amostras do couro e da grama encontrada dentro dele apontaram para a idade correta, indicando ser ainda mais velho que o de Ötzi.

“Quando achamos o sapato, tivemos que esperar o resultado da datação por radiocarbono até descobrir que era calcolítico. Foi muito emocionante”

“É sempre fantástico descobrir tais artefatos”, disse à CH On-line Ron Pinhasi, arqueólogo que liderou a pesquisa, da University College Cork (UCC), na Irlanda.

“Num sítio como a Areni, era muito animador porque, devido à incrível preservação orgânica, sabíamos que podíamos encontrar todo tipo de raridades. Mas quando achamos o sapato, tivemos que esperar o resultado da datação por radiocarbono até descobrir que era calcolítico. Foi um momento muito emocionante”, conta ele.

De acordo com o arqueólogo, as chances de encontrar um sapato de couro tão antigo nessas condições eram mínimas. “Nós hoje consideramos que muitas sociedades calcolíticas usavam sapatos, e as poucas descobertas de calçados pré-históricos mostra a sorte que tivemos ao encontrar tal objeto”, afirma. 

Caverna com escavações arqueológicas na Armênia
O buraco da caverna onde o sapato foi encontrado na Armênia (foto: Boris Gasparian, Academia Nacional de Ciências, Armênia).

 

Frio e fezes

As condições climáticas da caverna Areni-1 foram importantes para a preservação do calçado, favorecida pelo clima frio e seco da caverna. Mas o fator fundamental foram os excrementos depositados por carneiros no piso da caverna: a matéria orgânica funcionou como uma camada seladora que protegeu os objetos ao longo de milênios.

Matéria orgânica protegeu os objetos ao longo de milênios

O objeto foi encontrado de cabeça para baixo sob restos de um recipiente de cerâmica quebrado. Estava cheio de grama, o que, segundo estudos etnográficos, costumava ser usado como forro para proteger e esquentar os pés.

No contexto em que foi encontrado, porém, a equipe considerou que seu papel mais provável era manter a forma do sapato – não muito diferente do papel amassado usado nos dias de hoje.

Nas imediações do sapato foram encontrados uma escápula de veado-vermelho (Cervus elaphus) com restos de carne, dois chifres de fêmeas de cabras-selvagens (Capra aegagrus) e vértebras de peixe.

O arqueólogo Ron Pinhasi
O arqueólogo Ron Pinhasi, líder da pesquisa, com a foto do sapato encontrado na Armênia (foto: Tomás Tyner, University College Cork).

Outros objetos encontrados na caverna foram cacos, cordas, restos de tecidos, plantas, instrumentos de madeira e três jarros de cerâmica – cada um com um crânio intacto de um jovem adulto, revelando uma espécie de cemitério de crianças. 

Além dos objetos do Período Calcolítico, a caverna Areni-1 contém vestígios arqueológicos que datam desde o período Neolítico à Idade Média. A equipe de Pinhasi realizou escavações entre 2007 e 2009.

 

Pequena luz na escuridão

De acordo com o Pinhasi, a descoberta lembra o quão pouco se sabe sobre o cotidiano das pessoas de sociedades passadas. “O sapato nos oferece um raro vislumbre sobre a pré-história. Não deixa de ser um lembrete de que a grande maioria de objetos e características do passado foram destruídos e estão perdidos”, diz o arqueólogo.

Sapato de couro mais velho do mundo
O sapato descoberto na caverna (foto: Boris Gasparian, Academia Nacional de Ciências, Armênia).

Ele aponta para as grandes semelhanças das técnicas de manufatura e estilo desse sapato com as encontradas ao redor da Europa em períodos posteriores.

“Isso sugere que esse tipo de sapato foi usado por milhares de anos em uma região muito extensa e diversificada ambientalmente”, aponta ele. O calçado seria ainda muito parecido com os ‘pampooties’, um tipo de calçado usado no oeste da Irlanda até os anos 1950.

Na maioria dos casos, diz Pinhasi, só se pode mesmo reconstruir aspectos específicos do estilo de vida e das atividades das sociedades passadas. “Espero que esta e outras descobertas possam realçar o valor de estudos arqueológicos como instrumento para explorar a vida em tempos pré-históricos”, conclui ele.

Júlia Dias Carneiro
Ciência Hoje On-line