Durou mais do que o esperado, mas acabou. Ou melhor, recomeçou. Um comunicado publicado nas edições correntes das revistas Nature e Science põe oficialmente fim à moratória autosugerida dos estudos com cepas do vírus influenza H5N1 modificadas para serem transmitidas entre mamíferos. A interrupção, que durou cerca de um ano, serviu para que os governos e a comunidade científica pudessem, em teoria, reavaliar políticas de biossegurança e debater riscos e benefícios desse tipo de estudo.
A história começou em agosto de 2011, quando dois estudos com cepas do vírus H5N1 modificadas, realizados na Holanda e nos Estados Unidos, foram submetidos às revistas Nature e Science. Em dezembro, o Painel Consultivo sobre Biossegurança dos EUA solicitou modificações nos artigos, por medo do bioterrorismo, e recebeu o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS). Pesquisadores de todo o mundo decidiram, então, paralisar por 60 dias os estudos com esse tipo de cepa, para permitir um amplo debate sobre a questão.
Logo a OMS reviu sua posição e os trabalhos acabaram publicados na íntegra em junho do ano passado. A polêmica, entretanto, não acabou, já que o episódio estimulou discussões sobre biossegurança em diversos países. Agora, os autores da proposta original conclamam a retomada das atividades nas regiões em que as medidas para redução dos riscos já tenham sido decididas. “Reconhecendo que os objetivos da moratória voluntária já foram atingidos em alguns países e estão prestes a ser em outros, declaramos um fim à interrupção nos estudos sobre a transmissão da gripe aviária”, decreta o documento.
300 dias a mais
A virologista brasileira Helena Ferreira, da Universidade de São Paulo, explica que o episódio provocou revisões nas normas de segurança adotadas por governos e entidades internacionais para a pesquisa na área. “Por exemplo, o Canadá reclassificou esse tipo de vírus modificado como agente de classe de risco 4, em vez de 3, enquanto a Holanda manteve a classificação anterior”, explica. “Por isso, o comunicado solicita que os pesquisadores esperem a decisão final do seu país antes de recomeçar os estudos.”
O virologista argentino Daniel Perez, pesquisador da Universidade de Maryland (Estados Unidos), lamenta que o processo tenha demorado tanto, mas acredita que era necessário. “Muitos governos e agências de financiamento precisavam de tempo para analisar as implicações das pesquisas e a receptividade do público sobre os estudos”, avalia. “O debate foi bom para garantir que os benefícios das pesquisas sempre superem os riscos, mas existe uma ameaça de pandemia e agora precisamos seguir em frente.”
Para o argentino, o posicionamento dos Estados Unidos, que lideram e financiam muitos estudos na área, foi uma das principais razões para a demora. “O governo dos Estados Unidos ainda não concluiu a elaboração dos instrumentos que pretende adotar para orientar a realização e o financiamento de pesquisas com cepas de H5N1 modificadas”, explica. “Cientistas de outras partes do mundo poderiam ter recomeçado por conta própria as pesquisas, mas acho que consideraram melhor permanecer juntos para chegar a um consenso que beneficiasse a todos.” Apesar dos trabalhos ainda não estarem liberados no país, Perez acredita que isso acontecerá em breve.
Sobre as normas norte-americanas, um editorial também publicado na Nature destaca sua importância na definição das futuras pesquisas e no entendimento internacional sobre o tema. “De forma geral, as regras funcionarão como um guia de referência e incluem questões como a existência de alternativas mais seguras para investigar cada questão científica”, diz o texto. O editorial destaca, ainda, a mudança no foco do debate, que passou do bioterrorismo para a biossegurança, em especial na regulamentação de pesquisas com cepas modificadas com maior virulência e transmissibilidade.
No Brasil não houve grandes discussões em relação aos estudos de transmissão do vírus H5N1, uma vez que esse tipo de pesquisa está restrito a poucos grupos internacionais. “Pela legislação brasileira, esse tipo de agente deve ser manipulado em laboratórios de biossegurança nível 3, o que não foi alterado”, explica Ferreira. “No entanto, apesar de alguns laboratórios daqui trabalharem com desenvolvimento de vacinas e com detecção do vírus da influenza aviária em animais, não há estudos específicos sobre transmissão.”
Discussão substantiva
Apesar de ressaltar a importância da moratória, o editorial da Nature destaca problemas apontados por muitos críticos ao processo de discussão ocorrido em 2012. Ele aponta, por exemplo, a falta de estudos independentes sobre os riscos e benefícios relacionados ao tema, que poderiam ter sido conduzidos durante a moratória, e uma tendência do debate à reiteração de pontos de vista extremados contra e a favor desse tipo de pesquisa, sem uma efetiva troca de ideias. “A percepção de muitos críticos é que o debate aconteceu principalmente a portas fechadas, dominado por pesquisadores da área e financiadores de pesquisa que têm interesses em seus resultados”, afirma o texto.
Perez e Ferreira discordam. “A discussão sobre o episódio ocorreu de forma ampla no meio científico na área de influenza, embora as diversas notas publicadas em 2012 por pesquisadores da área tenham sido, às vezes, conflituosas”, avalia a brasileira. O argentino completa: “As discussões foram substantivas, o problema é que alguns têm certa dificuldade de admitir que os argumentos contrários também têm algum valor.”
Toda essa polêmica sem dúvida reflete a complexidade do tema e está longe do fim. No entanto, o próprio comunicado dos pesquisadores na Nature reforça a necessidade de retomar as pesquisas. “A controvérsia que cercou os estudos destacou a necessidade de uma abordagem global para lidar com pesquisas que apresentem um caráter dual de ameaça e benefício”, afirma, antes de ponderar: “Desenvolver soluções abrangentes para resolver todos os problemas desse tipo levará tempo. Enquanto isso, o vírus H5N1 continua a evoluir na natureza.” Parece mesmo que, finalizada a parada para discussões estratégicas, é hora de decolar novamente no encalço da gripe das aves.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line