A conclusão de um estudo sobre malária publicado nesta semana na revista Nature Medicine pode ter consequências diretas sobre programas de combate à anemia. Esse quadro, caracterizado pela deficiência de hemoglobina no sangue, geralmente é combatido por meio da suplementação de ferro.
O que um grupo de pesquisadores liderado pelas biólogas portuguesas Maria Mota e Silvia Portugal comprovou agora é que justamente a falta de ferro em células do fígado pode minimizar os riscos de se contrair uma superinfecção de malária.
“Isso pode fazer com que tratamentos que usam ferro para curar anemia sejam revistos em regiões onde a malária é endêmica”, diz a patologista brasileira Sabrina Epiphanio, da Universidade Federal de São Paulo, que participou da pesquisa, desenvolvida no Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa.
A destruição dos glóbulos vermelhos é a principal complicação da malária e, por isso, regiões atingidas por surtos da doença apresentam altos índices de ocorrência de anemia.
A malária é uma doença infecciosa causada por protozoários do gênero Plasmodium, transmitidos ao homem pela picada do mosquito Anopheles. Em um primeiro momento, o microrganismo entra na corrente sanguínea e invade as células do fígado do indivíduo (fase hepática).
Na chamada fase sanguínea, os protozoários são libertados pelo fígado no sangue e invadem as hemácias (glóbulos vermelhos). Somente nesse estágio da doença é que a pessoa infectada começa a sentir os primeiros sintomas, como febre intensa e calafrios.
O grupo do IMM é um dos primeiros a investigar a ocorrência simultânea das duas fases da enfermidade. Esse tipo de situação ocorre quando um paciente já está na fase sanguínea da malária e é infectado novamente pelo Plasmodium – o que pode levar à chamada superinfecção, quando há o desenvolvimento de duas infecções sobrepostas.
Testes em laboratório
O que chamou a atenção dos pesquisadores é que, embora crianças com menos de cinco anos sejam as principais vítimas da malária (por ter imunidade reduzida), o quadro de superinfecção não se manifesta nelas com mais frequência do que em pacientes de outras faixas etárias. “Percebemos que a fase sanguínea impede o desenvolvimento dos parasitas que estão em fase hepática e buscamos entender por quê”, conta Epiphanio.
A suspeita inicial era de que o sistema imunológico de um paciente já infectado impedia o desenvolvimento de uma segunda infecção. Na tentativa de confirmar a hipótese, os pesquisadores infectaram camundongos sem linfócitos (células de defesa) com duas espécies de Plasmodium, mas a superinfecção não ocorreu. Retiraram o baço (órgão que integra o sistema imunológico), e nada.
Algo acontecia para que os camundongos já infectados desenvolvessem uma capacidade de impedir a nova infecção. “Notamos então que nos animais doentes havia aumentado o nível de hepcidina, um hormônio produzido pelo fígado que controla o metabolismo do ferro no organismo”, relata a pesquisadora brasileira.
Novos experimentos foram feitos, dessa vez com uso de substâncias que controlam a hepcidina, e a dúvida estava solucionada. Quanto mais hormônio, menor disponibilidade de ferro nas células do fígado. E quanto menos ferro, mais dificuldade o Plasmodium apresentava para se desenvolver e voltar a atacar as hemácias, prevenindo a superinfecção.
Comprovado
A possibilidade de a ingestão de ferro aumentar o risco de infecção por Plasmodium já havia sido levantada há alguns anos. Em 2006, pesquisadores de Zanzibar, capital da Tanzânia, chegaram a propor a retirada da suplementação do mineral em crianças depois de constatar estatisticamente a relação – a mortalidade aumentava entre aqueles que consumiam mais ferro.
No mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou documento no qual recomendava a suplementação de ferro para crianças, porém com ressalvas. “Os resultados dos ensaios em Zanzibar sugerem que deve haver atenção em locais onde a prevalência de malária e outras doenças infecciosas seja elevada”, dizia o texto.
A publicação da OMS ressaltava, ao fim, que seriam necessárias pesquisas para responder a algumas questões. “Qual é a base fisiopatológica para o aumento de eventos adversos entre as crianças supridas com ferro que estão expostas a malária e outras doenças infecciosas?”, perguntava a instituição na época.
Malária ou anemia?
A resposta para a pergunta agora deixa outra dúvida: uma criança anêmica que vive em região endêmica de malária deve ou não receber suplementação de ferro? Em última análise, é quase o mesmo que optar entre a criança ter malária ou anemia.
A pesquisa não responde a essa questão, mas traz bases científicas para que o tema seja discutido. “Sabemos agora que a inibição de uma superinfecção por malária não está relacionada com qualquer fator do sistema imunológico”, ressalta a patologista brasileira.
De acordo com dados da OMS, a cada ano 1 milhão de pessoas morrem vítimas de malária, mal que atinge principalmente países pobres. Na África, uma de cada cinco mortes infantis está relacionada com a doença.
A causa mais comum de anemia é o baixo nível de ferro no organismo, mas o quadro pode decorrer também da falta de vitamina B12 ou de ácido fólico. Verminoses, hemorragias e até fatores genéticos são outras possíveis causas de anemia.
No Brasil, o Ministério da Saúde (MS) distribui gratuitamente a suplementação medicamentosa de sulfato ferroso para crianças de seis a 18 meses, gestantes a partir da 20ª semana de gravidez e mulheres até o terceiro mês pós-parto.
A iniciativa tem o propósito de reduzir a anemia por carência de ferro no Brasil, uma das diretrizes da Política Nacional de Alimentação. Segundo o MS, 1.232 casos de malária foram notificados no país em 2010.
Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR