Tomando conta da praça

Em uma tarde de sol, em uma praça em Belo Horizonte, Minas Gerais, crianças brincam. A cena nada teria de especial se não fosse a forma como elas escolhem brincar. Em vez dos brinquedos ali instalados, outros elementos dão o tom das brincadeiras.

As barras de guarda-corpo transformam-se em suporte para acrobacias, as encostas do terreno viram escorregadores, e o orelhão serve para ligar para um número ‘0800’ e escutar uma gravação engraçada em japonês.

Essas constatações sobre o modo como os meninos utilizam a praça são resultado da pesquisa do arquiteto e doutorando em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Samy Lansky. Especialista em criar brinquedos e espaços de lazer para crianças, ele se dedica desde 2004 a compreender a forma como elas se apropriam dos espaços públicos e atribuem significados próprios a esses lugares.

O assunto foi tema de seu mestrado, também em educação na UFMG. No estudo, ele analisou como os moradores mirins do bairro Barreiro, uma área de risco na periferia de Belo Horizonte, se relacionavam com a praça Jerimum, um dos poucos locais destinados ao lazer na região.

No vídeo abaixo, o pesquisador mostra como um parque pode refletir a desigualdade social

 

Do projeto para o real

A investigação tinha significado especial para Lansky: ele foi um dos responsáveis pela reforma mais recente da praça, concluída em 2003, quando o lugar se firmou como espaço de recreação, com a instalação de brinquedos. A comunidade, inclusive as crianças, teve participação ativa no projeto de reformulação, expondo o que gostaria que fosse incluído, e até hoje se coloca como “guardiã” da praça, impedindo depredação ou pichações.

“Foi interessante voltar e ver como as crianças haviam se apropriado do lugar. Tudo é um brinquedo em potencial para elas – as barras, os telefones, os pisos, as árvores. O arquiteto não tem como prever isso quando faz o projeto”, explicou.

Para desenvolver a pesquisa, ele observou as atividades das crianças, entrevistou várias delas e até participou de algumas brincadeiras: como passava muito tempo na praça, os meninos passaram a convidá-lo para brincar. “Nenhum outro adulto era chamado. Isso pode ter sido um sinal de que fui aceito por elas”, arriscou.

Havia uma disputa latente pelo controle do território entre as crianças mais velhas e as mais jovens

Além de perceber que as crianças utilizam toda a praça como espaço para lazer, e não apenas os elementos originalmente destinados a esse fim, o pesquisador notou também que elas frequentavam o local em horários diferentes, conforme a faixa etária.

Isso porque havia uma espécie de disputa latente pelo controle do território entre as mais velhas e as mais jovens. Ele percebeu também que aquele era um lugar onde podiam exercitar a autonomia. Ali, as crianças – principalmente as maiores – poderiam dar vazão à sua vontade de brincar sem a supervisão tão direta dos adultos, o que também ocorria com as menores, em menor grau.

Intitulado Praça Jerimum: cultura infantil no espaço público e desenvolvido entre 2004 e 2006, o estudo foi agraciado com uma menção honrosa na edição do ano passado do Prêmio Design do Museu da Casa Brasileira, na categoria ‘Trabalhos escritos não-publicados’.

Parque Jornalista Eduardo Couri, em Belo Horizonte: disparidade social à vista
O Parque Jornalista Eduardo Couri, em Belo Horizonte: a parte próxima a um bairro de classe média alta tem ciclovia e jardim bem cuidados, enquanto o trecho perto de favelas tem menos brinquedos e sinais de abandono (fotos: Desireé Antônio).

Da praça para o parque

Em seu doutorado, iniciado em 2008, Lansky continua a se dedicar ao problema da apropriação dos espaços públicos pelas crianças e seus modos do brincar. Desta vez, seu objeto de estudo são as relações que se dão no âmbito do Parque Jornalista Eduardo Couri, localizado no bairro Santa Lúcia, região sul da capital mineira.

Construído em 1996 em torno de uma barragem – motivo pelo qual ficou conhecido como Barragem Santa Lúcia –, o parque está numa área de encontro entre uma população de classe média alta e outra em situação de risco social, de favelas.

O parque não propicia o encontro entre os dois grupos socioeconômicos: “O espaço ainda é muito estratificado”

Apesar de estar localizado entre duas realidades tão distintas, o parque não propicia o encontro entre os dois grupos socioeconômicos, segundo o pesquisador. “O espaço ainda é muito estratificado. Ainda há uma segregação socioespacial”, disse.

Quem chega ao parque nota rapidamente a existência de dois ambientes muito diferentes, ainda que não haja limites físicos dividindo-os. A parte próxima à área onde estão os moradores de maior poder aquisitivo é mais limpa, recebe mais cuidados da administração pública, tem mais brinquedos e comércio.

Já naquela mais perto das favelas é possível encontrar lixo espalhado pelo chão, como se não houvesse coleta. A grama não é capinada, os brinquedos existem em menor quantidade e qualidade e há até algumas galinhas soltas no local, como presenciou a reportagem da CH On-line.

Nesses dois anos de observação do parque, ele também percebeu que os grupos o frequentam em horários distintos. Pela manhã, há mais pessoas de classe média, fazendo exercícios, ao lado de crianças pequenas acompanhadas pelas mães ou pelas babás. Ao fim da tarde e nos fins de semana, os moradores das áreas mais pobres, inclusive os mais jovens, sozinhos, tomam conta do lugar.

Algumas brincadeiras são comuns tanto à praça quanto ao parque

Outra conclusão parcial do trabalho é que algumas brincadeiras são comuns tanto à praça Jerimum quanto ao parque. Como usar as encostas como escorregador e um jogo chamado ‘pau no litro’, uma espécie de jogo de taco com garrafas PET. “Pode ser que as crianças compartilhem essas brincadeiras na escola e as levem para seus bairros”, justifica.

Lansky explica que ainda deverá observar o local por mais algum tempo antes de passar a entrevistar as crianças, próxima fase da pesquisa. Com o nome provisório de Circuitos da infância urbana, o trabalho deverá ser finalizado em 2012. 

Desireé Antônio
Especial para a CH On-line