Tradição sulista favorece câncer de esôfago

O consumo do tradicional chimarrão pode explicar por que o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com maior incidência de câncer de esôfago. Um estudo recente concluiu que a temperatura e a quantidade da bebida transformam o hábito em um importante fator de risco para o desenvolvimento da doença.

O calor intenso da água do chimarrão pode provocar queimaduras na parede do esôfago e predispor ao desenvolvimento de câncer

“São cerca de 2 litros de água a 70° C consumidos todos os dias durante boa parte da vida de um indivíduo” — diz Luis Felipe Ribeiro Pinto, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador do Grupo de Estudo de Esôfago do Brasil.

Luis Felipe integrou a equipe de cientistas de vários centros de pesquisa que buscaram identificar os fatores de risco associados à doença. O estudo acrescentou o consumo de chimarrão a outros dois fatores conhecidos há mais de 40 anos — tabagismo e alcoolismo.

Os prejuízos começam quando se leva a bomba do chimarrão ao fundo da língua: o calor intenso provoca queimaduras na parede do esôfago. Enzimas ligadas ao processo inflamatório decorrente produzem radicais livres, capazes de reagir com os genes responsáveis pela proliferação das células, o que pode desregular o ciclo celular e dar início ao tumor.

A doença mata cerca de 90% dos pacientes seis meses após o diagnóstico, em parte devido à agressividade do tumor e ao diagnóstico tardio. “O esôfago é um órgão assintomático para a dor. Não agüentaríamos colocar a mão em água com a temperatura do chimarrão, mas não sentimos dor quando bebemos o chá”, diz o professor. “Quando o paciente se dá conta da doença, já está com metástase no pulmão e na aorta.”

 

À direita, desenvolvimento anormal de tecido do esôfago de rato tratado com chimarrão quente; à esq., esôfago de rato que ingeriu chimarrão frio
Imagens: M.F. Sampaio, T.C. Barja-Fidalgo, C.D.P. Kruel, L.F.R. Pinto

 
Os pesquisadores analisaram também a ação de uma das substâncias mais atuantes no desenvolvimento do câncer de esôfago — as nitrosaminas. Conhecidas como cancerígenos esofágicos desde 1967, elas são produzidas naturalmente no estômago, mas representam verdadeiro perigo para o esôfago, onde são ‘quebradas’ em uma reação que produz agentes cancerígenos. Essa transformação é resultado da atividade de uma proteína que ainda não havia sido identificada.

 

Coube aos pesquisadores identificar o gene responsável pela produção dessa proteína em humanos. A descoberta partiu de experimentos em ratos, que mostraram a presença da nitrosamina cancerígena no esôfago dos animais e possibilitou relacioná-la à expressão do gene CYP2A3. Novos experimentos, agora em 50 humanos, permitiram relacionar a presença de nitrosaminas ao desenvolvimento dos tumores e determinar o gene (CPY2A6) responsável pela produção da proteína.

Segundo Luis Felipe, a ingestão de bebidas muito quentes pode também fragilizar as defesas naturais do esôfago contra substâncias cancerígenas, pois a quantidade de radicais livres que irá atacar o DNA será provavelmente maior que a capacidade do esôfago de manter seu DNA intacto.

A etapa mais recente do estudo analisou 160 pessoas sadias e 80 com câncer de esôfago e permitiu associar um novo gene — o GSTP1 — ao desenvolvimento desse câncer. Esse gene pode funcionar como ‘guardião’ do DNA das células do esôfago, importante no combate à ação dos cancerígenos. Os resultados mostraram que aqueles que possuíam câncer tinham uma freqüência muito maior de alteração nesse gene em relação aos indivíduos sadios.

Fábia Andérez
Ciência Hoje On-line
16/10/03