Um começo diferente

A vida moldada a partir do barro. Não se trata exatamente do homem à espera do sopro divino, mas da origem de nossas mais longínquas ancestrais, as primeiras células do planeta, que podem ter surgido no interior de berçários naturais, quentes, úmidos e ricos em compostos químicos, formados pelos vapores exalados do interior da Terra e condensados em pequenos lagos barrosos. Esta é a teoria apresentada por um artigo na edição atual da revista Pnas, que contraria a versão mais aceita de que a vida teria surgido nos mares primitivos.

Praticamente isolados do mundo exterior, os sistemas dominados por vapor aquecido teriam a combinação perfeita para o desenvolvimento da vida

Praticamente isolados do mundo ao seu redor, esses sistemas dominados por vapor aquecido teriam apresentado a combinação perfeita de substâncias orgânicas e inorgânicas necessárias para o desenvolvimento das primeiras formas de vida. De lá, as células primitivas teriam evoluído até alcançarem os ecossistemas aquáticos do planeta, para crescer e se multiplicar. 

Liderados pelo biofísico russo Armen Mulkidjanian, da Universidade de Osnabrück, na Alemanha, e da Universidade de Lomonosov, na Rússia, os pesquisadores analisaram evidências geotérmicas, celulares e genéticas para reconstruir a origem da vida. O grupo avaliou a composição dos ecossistemas terrestres e marinhos ancestrais – tendo como referência as características prováveis das células primitivas – e estudou os aspectos funcionais comuns às células atuais e a seus antepassados. 

Fruto da colaboração de Alemanha, Rússia e Estados Unidos, o estudo envolveu áreas da ciência como biofísica, geoquímica, bioinformática e genômica comparativa. 

 

Um enigma ancestral

Algo que sempre desafiou a hipótese corrente da origem marinha da vida é a presença de grande quantidade de potássio, fosfato e metais de transição, como zinco, no interior das células atuais. Para os cientistas, essa composição deveria refletir o ambiente natural em que as primeiras células surgiram, uma vez que estas não seriam capazes de manter equilíbrios químicos diferentes entre seu interior e seu exterior como as atuais conseguem – resultado de milhões de anos de evolução. 

A hipótese do oceano como berço da vida esbarra na ausência de elementos provavelmente importantes para a célula ancestral e no excesso de sódio

Porém, não é o que ocorre com os oceanos, primitivos ou atuais. “Além de não apresentarem diversos desses elementos, os mares registram abundância de sódio, pouco comum no interior das células”, explica Mulkidjanian. 

Se os oceanos não encaixam muito bem como berçário da vida, onde as primeiras células teriam nascido, afinal? Segundo a nova teoria, em zonas terrestres úmidas e quentes, dominadas por vapor hidrotermal. “As áreas ancestrais reuniriam altas concentrações de metais, trazidos do interior da Terra pela água extremamente quente”, afirma o biofísico, “e apresentariam taxas adequadas de potássio e sódio, compostos de fósforo e moléculas orgânicas para abastecer as reações biossintéticas”.

Essas regiões seriam semelhantes a locais como Yellowstone, nos Estados Unidos, e Kamchatka, na Rússia, porém menos ácidas, pela ausência de oxigênio na atmosfera primitiva. Com fontes de calor autônomas, apresentariam bom isolamento térmico e composição definida basicamente pelas atividades geotermais. Assim, ofereceriam relativa independência em relação a mudanças climáticas e períodos de glaciação. 

 

Para o oceano e além

A vida, no entanto, precisava chegar aos oceanos, pois sabemos que foi lá que surgiram os primeiros organismos complexos. Por isso, em algum ponto, as células primitivas tiveram que abandonar a segurança de seus berçários. De fato, prepararam-se durante milhões de anos para fazê-lo, utilizando os isolados e estáveis campos geotermais como incubadoras para os primeiros passos evolutivos. 

Origem da vida
Em vez de ter nascido nos oceanos, nova teoria defende que a vida teve de se adaptar e evoluir para então poder conquistar os mares, onde os primeiros organismos complexos puderam se desenvolver. (foto: Flickr/ raysto – CC BY-NC-SA 2.0)

Nesse período, teoriza Mulkidjanian e sua equipe, é possível que membranas e estruturas capazes de proteger a composição das células em relação ao meio externo tenham se desenvolvido. “Assim, elas teriam podido alcançar bacias aquáticas terrestres e chegar aos mares, onde foram duramente desafiadas pelas concentrações de sódio e deram origem a toda vida da Terra.”

Para os autores, o novo modelo muda o entendimento sobre os primórdios da evolução. “Até agora, havia um foco muito grande nos ecossistemas marinhos, porém sem que fosse possível simular um modelo viável para o início da vida”, discute o biofísico. “Acredito que o modelo que propomos será muito mais frutífero nesse sentido.”

“Nossa teoria poderá ajudar a explicar as propriedades dos sistemas celulares modernos; nada na biologia faz sentido exceto sob a luz da evolução”

Curiosamente, a teoria proposta pelo russo é conceitualmente parecida com as ideias propostas há mais de um século por Charles Darwin sobre a origem da vida em pequenos lagos quentes, ricos em amônias, sais, luz, calor e eletricidade, que formassem um composto químico de proteínas pronto para sofrer mudanças mais complexas.

Muitas das condições ancestrais agora propostas podem ser modeladas e testadas em laboratório. “Pelo menos alguns passos desse esquema já podem ser simulados e estamos ansiosos para isso”, admite Mulkidjanian. “O desenvolvimento futuro de nossa teoria poderá ajudar a explicar as propriedades dos sistemas celulares modernos; nada na biologia faz sentido exceto sob a luz da evolução”, completa o russo, em referência a um famoso ensaio evolucionista do geneticista ucraniano Theodosius Dobzhansky

 

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line