Um dia da caça, outro do pesquisador

É fato bem conhecido que animais herbívoros são presas de carnívoros. Já o registro fóssil da relação entre predadores e sua caça é bastante raro. Mas um estudo feito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) evidenciou a interação entre dicinodontes e arcossauros do Triássico Superior (aproximadamente 200 milhões de anos atrás). As evidências surgiram da análise de depósitos fossilíferos localizados perto da cidade de Candelária, na região central do RS, a 180 km de Porto Alegre.

Exclusivamente herbívoros, os dicinodontes eram quadrúpedes cujo tamanho variava de 40 cm (como comprovam fósseis encontrados na África do Sul) a 3 m (caso de espécies encontradas na Argentina e no Brasil). “Quando estudamos o material da coleção da UFRGS, encontrado em sedimentos triássicos, percebemos marcas na escápula do animal [do gênero Jachaleria] que pareciam causadas por dentes”, conta a autora da pesquisa, Cristina Vega-Dias, do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Paraná.

Vista medial da escápula do dicinodonte do gênero Jachaleria com marcas de predação. As setas menores mostram perfurações (fotos: Cristina Vega-Dias).

As marcas são uma prova de que os arcossauros (grupo de animais que inclui os fitossauros e os dinossauros) se alimentavam da carne da espécie herbívora. “Não pudemos determinar qual era o arcossauro predador, uma vez que havia restos de fitossauro, dinossauro e outros arcossauros no depósito”, diz Vega-Dias. “No entanto, a descoberta é importante porque revela a interação paleoecológica entre dois grupos de animais do Triássico na região Sul do Brasil.”

Segundo a pesquisadora, o que se pode afirmar é que o predador não era o dinossauro Guaibasaurus, cujo fóssil foi encontrado no mesmo local onde estava o dicinodonte. “Esse dinossauro é pequeno e dificilmente deixaria marcas do tamanho observado no material estudado”, afirma.

No depósito, foram identificados fragmentos de mandíbula de um fitossauro, mas como a extremidade dos dentes não estava preservada, não foi possível comparar com os sulcos deixados na escápula do dicinodonte. Foram descobertos também dentes isolados com serrilhas bem características, típicas de animais carnívoros, mas não se sabe a que grupo de arcossauro pertenciam.

Moldes
Para comprovar a relação presa-predador, a pesquisadora fez moldes em látex das marcas deixadas na escápula do dicinodonte e as comparou com moldes das marcas feitas artificialmente em plastilina (massa de modelar) a partir dos dentes isolados de arcossauros. “Poucos pesquisadores fazem esse tipo comparação; em geral, eles se preocupam mais com a morfologia e com as relações de parentesco entre os grupos”, diz a paleontóloga.

O estudo, publicado na revista Paleobios, da Universidade da Califórnia (EUA), foi parte da tese de doutorado da pesquisadora, defendida na UFRGS. Em sua tese, ela aborda vários aspectos dos dicinodontes triássicos, como morfologia, filogenia e paleobiologia. Durante o mestrado, Vega-Dias trabalhou com esses materiais e descreveu os ossos pós-cranianos do dicinodonte encontrado no depósito gaúcho.

Os Dicynodontia, que viveram entre o Permiano Superior (há cerca de 260 milhões de anos) e o Triássico Superior, são um grupo primitivo que se encontra na linha evolutiva dos mamíferos. As espécies mais primitivas apresentavam dentes que, com o passar do tempo, foram substituídos por um processo córneo de revestimento. Os gêneros derivados, como é o caso do Jachaleria, já não apresentavam dentes, mas um processo caniniforme bem desenvolvido, revestido por esse recobrimento córneo. Tal evolução foi extremamente eficaz para o corte de folhas, que os dicinodontes usavam em sua alimentação.

Jaqueline Bartzen
Especial para a CH On-line / PR
16/09/2008