Um eclipse na Odisséia?

Estudo publicado na PNAS desta semana reaviva um debate que movimenta filósofos e historiadores da ciência há séculos: há na Odisséia, obra épica atribuída a Homero, poeta grego que teria vivido no século 8 a.C., uma descrição poética de um eclipse solar total? Segundo os pesquisadores, passagens do poema interpretadas como referências astronômicas permitem confirmar essa hipótese e apontar a data em que o fenômeno teria ocorrido.

Busto de Homero, primeiro grande poeta grego conhecido, que teria vivido no século 8 a.C. A ele são atribuídos os mais antigos documentos literários ocidentais que chegaram aos nossos dias: a Ilíada, que narra os acontecimentos finais da Guerra de Tróia; e a Odisséia, que relata a viagem do rei Odisseu, herói dessa batalha, de volta para sua casa na ilha grega de Ítaca. Mas a autoria desses textos – e a própria existência real de Homero – é questionada (foto: Wikimedia Commons).

A Odisséia, um dos textos fundadores da cultura greco-romana, é um poema dividido em 24 livros que relatam a viagem de regresso do rei Odisseu (ou Ulisses, na versão romana), depois da tomada de Tróia. Após a guerra, o protagonista demora a retornar à sua pátria, e pretendentes para sua esposa, Penélope, aparecem na esperança de que ela se case de novo. Mas Odisseu consegue voltar e prepara o massacre dos pretendentes.

A suposta descrição do eclipse está no 20º livro da Odisséia, conhecido como a ‘profecia de Teoclimeno’. Enquanto os pretendentes de Penélope estão sentados para a refeição do meio-dia, o profeta Teoclimeno prevê a morte deles e sua entrada em Hades, o mundo subterrâneo, uma espécie de inferno. Ele então finaliza com a frase: “O Sol se apaga do céu e uma infeliz escuridão invade o mundo.”

A hipótese de que esta seria a descrição de um eclipse já era defendida por Heráclito, filósofo grego pré-socrático que viveu entre os séculos 5 e 6 a.C., e Plutarco, filósofo grego que viveu entre os séculos 1 e 2 d.C., e foi sustentada por outros cientistas desde então. Mas essa idéia não é aceita pela maioria dos estudiosos de Homero, porque não há menção explícita a um eclipse em outros registros. Além disso, há argumentos de que a passagem ocorre em um local fechado, nenhum outro personagem parece ter visto o eclipse e a escuridão descrita se assemelha à imagem de Hades.

Para lançar nova luz sobre essa questão, os cientistas analisaram três outras passagens da Odisséia, interpretadas por eles como descrições de fenômenos astronômicos. Então procuraram em registros históricos por datas, entre os anos de 1250 e 1115 a.C., em que esses fenômenos pudessem ter ocorrido.

Linha do tempo astronômica
A análise e datação dessas passagens sustentam a hipótese de que a frase de Teoclimeno se refere a um eclipse solar total ocorrido em 16 de abril de 1178 a.C. Segundo os pesquisadores, as referências astronômicas contidas na Odisséia, embora poucas, são significativas. Elas definem a linha do tempo da obra e estruturam a viagem de volta de Odisseu da guerra de Tróia.

Um dos autores do estudo, Marcelo Magnasco, da Universidade Rockefeller, em Nova York (EUA), conta que eles chegaram à data de 16 de abril de 1178 a.C. a partir de duas fontes independentes. “É a única data que combina com o padrão associado à Lua, às estrelas e aos planetas descrito na Odisséia e é o único eclipse solar total ocorrido na região em questão em mais de um século”, diz Magnasco à CH On-line. Eclipses totais do Sol são raros e ocorrem aproximadamente uma vez a cada 370 anos.

Reconstrução de como o eclipse total do Sol de 16 de abril de 1178 a.C. teria sido visto no topo das montanhas de Paliki, onde se especula que ficava o palácio de Odisseu (arte: Marcelo Magnasco – clique na imagem para ampliá-la).

No fim da década de 1920, cientistas já haviam calculado a ocorrência de um eclipse solar total em 16 de abril de 1178 a.C., próximo ao meio-dia, sobre as ilhas Iônias (região da Grécia antiga onde hoje fica a Turquia). Durante o fenômeno, os cinco planetas visíveis a olho nu, a Lua e a coroa solar podiam ser vistos simultaneamente.

No artigo da PNAS, os cientistas ressaltam que dois diferentes conjuntos de versos apontam a mesma data específica independentemente, com uma probabilidade baixa de que isso tenha acontecido por acaso. Por outro lado, eles admitem que suas interpretações de que as três passagens da Odisséia analisadas se referem a fenômenos astronômicos podem estar incorretas e que, mesmo que estejam corretas, não há indicações de que esses eventos realmente tenham ocorrido.

Há pontos duvidosos na hipótese de que o trecho da profecia de Teoclimeno pode se referir não apenas a um eclipse usado para efeito literário, mas a um fenômeno histórico. Ela representaria a transmissão através de tradição oral de uma informação sobre um eclipse ocorrido talvez cinco séculos antes de o poema ter vindo a público na forma como conhecemos hoje.

Mas os autores do novo estudo acreditam que meios alternativos de obtenção dessas informações poderiam estar disponíveis na época. Para Magnasco, Homero poderia ter sabido do eclipse não apenas pela tradição oral, mas também pela preservação dos registros e pelo cálculo retroativo da posição dos planetas. “Mas todas essas opções são improváveis. Não temos uma explicação, apenas especulações.”

Os autores assumem que a hipótese deles está longe de ser provada. Mas destacam: “A probabilidade de que referências puramente ficcionais a esses fenômenos coincidiriam por acaso com o único eclipse do século são mínimas.” Eles esperam que seu trabalho convença os estudiosos de que essa ainda é uma questão em aberto e inspire novos estudos sobre esse eclipse homérico.  

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line
24/06/2008