Parecia uma mesa-redonda após a final de um importante – e longo – campeonato. Físicos do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) reuniram-se na sexta-feira passada (6/7) para discutir os principais lances de uma partida decisiva, que culminou com o anúncio da descoberta de um provável bóson de Higgs, dois dias antes (4/7).
Os pesquisadores resgataram os momentos mais marcantes dos quase 80 anos de história por traz do empreendimento, além de avaliarem sua importância e possíveis consequências para a física de partículas e para a ciência de forma mais ampla. O balanço é de que, seja o Higgs ou não, nem uma nem outra serão as mesmas.
O físico de altas energias Ignacio Bediaga, colaborador de um dos experimentos do LHC, o famoso acelerador de partículas por trás do feito, abriu o encontro reavaliando os dados apresentados pelo Atlas e pelo CMS. Bediaga chamou atenção para o recente aumento de rendimento do Cern. “Nos últimos meses, os experimentos realizados no LHC provocaram mais colisões do que em todo o ano passado”, explicou. “Houve uma intensificação na busca pelo bóson e a superação definitiva dos problemas de 2008, que atrasaram os trabalhos.”
A campanha dos ‘times’ de físicos teóricos e experimentais também ganhou destaque. Com vitórias e derrotas, fato é que eles trabalharam juntos nos últimos 80 anos para estabelecer o chamado Modelo Padrão – a base teórica usada para explicar a constituição de grande parte do universo visível.
Seu maior feito é seguir invicto, tornando-se a teoria mais bem estabelecida da física, segundo o físico teórico José Helayel. “Confirmamos todas as suas previsões e as descobertas experimentais encaixaram-se em suas lacunas”, afirmou. “O bóson de Higgs é a única peça desse quebra-cabeça ainda não comprovada experimentalmente.”
Um cemitério de teorias pelo caminho
Helayel relembrou parte dessa história de pequenas partículas e grandes ideias. “No início, isso era ‘coisa de maluco’, tanto que a revista Nature rejeitou, em 1933, um importante artigo de Enrico Fermi sobre interação fraca por considerá-lo ‘fora da realidade’”, destacou o físico. “As descobertas nos anos seguintes, no entanto, deram força à nova teoria.”
Embora acredite que o bóson encontrado no Cern é mesmo o previsto por Higgs, o físico citou uma história da década de 1940 para defender que é preciso cuidado antes de dar o apito final no caso. “Houve certa decepção e surpresa quando, acreditando que haviam encontrado o hipotético méson pi, os cientistas acabaram por fazer o primeiro registro de outra partícula, não prevista, o múon”, lembrou Helayel.
Para o especialista em altas energias Ronald Shellard, o episódio é só um exemplo de que a trajetória da física de partículas não é nem um pouco linear. “Pelo caminho, existe um enorme cemitério de teorias que se mostraram erradas”, afirmou. “Essa é a marca do processo científico e é isso que concede solidez ao Modelo Padrão.”
Helayel comparou a situação atual com a que outros físicos experimentaram na primeira metade do século 20. Em 1913, Niels Bohr previu seu modelo atômico, que só foi confirmado na década seguinte a partir de outras descobertas sobre a estrutura do átomo. Em seguida, a física quântica começou a ganhar destaque. “Se esse bóson for mesmo o de Higgs, assentamos nosso ‘modelo atômico’ e agora precisamos ‘inventar’ uma nova física. Mas se não for, a situação será igualmente rica”, argumentou.
Para ele, os dois cenários alimentam uma física que vai além do Modelo Padrão. “Podemos ter pistas sobre novas partículas hipotéticas mais elementares, subcomponentes de outras partículas, como quarks“, avaliou. “Além disso, podemos intensificar a busca por teorias que contemplem a gravitação, excluída do Modelo Padrão, ou mesmo pensar em uma quinta força fundamental, que explique o que confere massa ao Higgs”, cogitou.
Empreendimento coletivo
Para os pesquisadores do CBPF, a importância da descoberta do novo bóson ultrapassa os limites da física de partículas. Ela representa o primeiro resultado realmente impressionante de um grande empreendimento, o próprio LHC. Para Shellard, uma vitória do ‘jogo de equipe’ mais impressionante e emblemático do que a chegada do homem à Lua.
“Um único país chegou à Lua. Mas você não constrói um empreendimento como o LHC sozinho”, explicou. “Foram necessários 28 anos para chegar até esse ponto, já que a discussão sobre um acelerador como o LHC começou na década de 1980, e isso só foi possível pela extensa cooperação internacional”, lembrou o físico, que integra um grupo de trabalho para estudar a associação do Brasil ao CERN.
Shellard lembrou ainda que o bóson de Higgs não foi o único motivo que levou a elaboração do LHC. O acelerador é uma ferramenta de exploração da natureza, que continuará a gerar conhecimento – e tecnologia – por décadas. “Quando o projeto começou, não havia tecnologia ou computadores para construí-lo, foi preciso inventar tudo”, argumentou. “É por causa desse retorno que, apesar de associar-se ao Cern exigir um enorme investimento, existe um grande interesse internacional nessa questão.”
Ele destacou que, mesmo com a crise na Europa, países como Portugal e Grécia não ameaçam deixar o consórcio – a Áustria chegou a anunciar essa intenção, mas voltou atrás pela grande pressão. “Certamente isso acontece porque os setores industriais e econômicos sabem como o empreendimento gera retorno em desenvolvimento de novas tecnologias”, afirmou. “O Brasil tem ganhado mais destaque na pesquisa internacional e sem dúvida deve participar desse tipo de empreendimento”, concluiu.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line