Não é algo muito usual ver o seu avô jogando video game, certo? Pois talvez devesse ser. Um experimento realizado nos Estados Unidos mostrou que a utilização de um jogo digital pode ajudar a recuperar, de forma prolongada, algumas capacidades cognitivas de pessoas idosas, além de provocar alterações positivas em determinados padrões cerebrais. Tais resultados reforçam as possibilidades de plasticidade cerebral mesmo em idades mais avançadas e sinalizam que é possível usar esse tipo de recurso para reduzir os efeitos do envelhecimento.
Em geral, a realização de diversas tarefas simultaneamente – algo bem comum no mundo em que vivemos hoje – provoca interferências no processamento das informações, um desafio para nosso controle cognitivo. O estudo, publicado na Nature na semana passada, explorou justamente essa característica a partir de um jogo virtual especificamente desenvolvido para esse fim, o NeuroRacer. Ele é composto por duas ‘tarefas’: a identificação de um símbolo específico na tela, em meio à apresentação alternada de diversos outros, e o objetivo de manter um automóvel no centro de uma rua, usando um joystick.
Em um primeiro teste, foram avaliados 174 participantes, de 20 a 79 anos, divididos por faixa etária. A resposta dos voluntários foi avaliada a partir da capacidade de completar as duas tarefas de forma simultânea; quanto mais erros, maior o ‘custo’ cognitivo da simultaneidade. Para calibrar o teste, os participantes primeiro jogaram cada etapa isoladamente, o que serviu para balancear a dificuldade e igualar o desafio para todos. Assim, toda diferença de desempenho representou apenas uma variação na capacidade de realizar múltiplas atividades e não nas habilidades individuais em cada teste. Reforçando indícios anteriores, os resultados mostraram o aumento linear do custo cognitivo da realização das tarefas conjuntas de acordo com o avanço da idade.
Treino para o cérebro
Um segundo experimento reuniu 46 adultos entre 60 e 85 anos, divididos em três grupos: um jogou a versão completa e simultânea do NeuroRacer em casa, durante uma hora, três vezes por semana, por quatro semanas. Outro realizou treinamento semelhante, mas apenas com as duas tarefas do jogo de forma independente, enquanto um último grupo não teve contato com o NeuroRacer. Logo após o treinamento e depois de um intervalo de seis meses, os participantes realizaram novos testes com a versão completa do jogo.
Os dois grupos treinados registraram melhora equivalente na habilidade de lidar com as tarefas separadamente. Porém, apenas o que praticou com o jogo completo mostrou resultados expressivos na redução do custo cognitivo relacionado à realização das duas tarefas de forma simultânea – de 64% para 16% de redução da capacidade cognitiva, um desempenho final melhor do que o de jovens na faixa dos 20 anos em seu primeiro contato com o NeuroRacer. O mesmo grupo apresentou, também, indícios de melhorias em outras áreas relacionadas ao controle cognitivo, como atenção sustentada e memória de trabalho, importantes em atividades do dia a dia, da leitura à culinária.
Confira um vídeo que mostra um pouco mais sobre o processo de treinamento e avaliação dos participantes
De acordo com os pesquisadores, o resultado não se resume à melhora na habilidade dos jogadores em cada componente (observada nos dois casos), mas reflete o aprendizado do cérebro para lidar com a interferência gerada por duas tarefas simultâneas. “Isso reforça a ideia de que a interferência é central no processo de adaptação do cérebro”, explica um dos autores do estudo, Joaquin Anguera, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. “Além disso, a imersão num ambiente desafiador, adaptável e com grande interferência parece melhorar o desempenho em tarefas não treinadas relacionadas ao mesmo tipo de mecanismo cognitivo.”
Uma análise complementar também avaliou, com o uso de eletroencefalogramas, a base neural desses efeitos. O grupo treinado com o NeuroRacer completo novamente foi o destaque: apresentou significativa melhora na atividade do córtex pré-frontal e nas redes neuronais que ligam essa área do cérebro à parte posterior do órgão, ambas relacionadas ao controle cognitivo e a melhoras na atenção sustentada.
Os resultados mostram, segundo os autores, uma importante modulação neural a partir do treinamento cognitivo em adultos mais velhos. “Observamos uma neuroplasticidade induzida pelo treinamento e relacionada diretamente ao papel da interferência provocada pela realização de múltiplas tarefas”, avalia Anguera. “Outro ponto importante é que os índices registrados após um mês de treinamento permaneceram estáveis mesmo seis meses depois do processo concluído.”
Racionalizar, contemporizar e cogitar
Segundo declarou ao Science Media Centre a especialista em cognição e envelhecimento Alexandra Trelle, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, os resultados refletem estudos anteriores que associam treinamentos específicos de idosos, melhorias cognitivas pontuais e alterações cerebrais nas áreas correspondentes.
“Já sabemos há algum tempo que ‘macacos velhos aprendem, sim, truques novos’”, disse também ao Science Media Centre o neurologista Emil Toescu, da Universidade de Birmingham, também no Reino Unido. O problema, segundo ele, é a especificidade – justamente o ponto que considera mais interessante do estudo, que aprimorou a performance em mais de uma tarefa e transferiu essa melhora para outras áreas cognitivas, com efeito prolongado.
Mas, como destaca o próprio Anguera, antes de pensar em utilizar esse tipo de jogo contra os impactos do envelhecimento, é preciso produzir ganhos maiores nas atividades cotidianas e não só em tarefas específicas. “O NeuroRacer foi criado para um estudo específico, não serve como panaceia para problemas cognitivos”, ressalta. “Mas os resultados podem ajudar a desenvolver, no futuro, um treinamento terapêutico direcionado a determinados grupos, desde que desenvolvido de forma específica e cuidadosa.”
Toescu também ponderou que os resultados ainda são muito preliminares e que avaliam apenas uma faixa especifica de atividade cerebral – deixando de lado outras frequências que podem ter, inclusive, maior relevância para a capacidade cognitiva. Além disso, destacou que o NeuroRacer está muito aquém das possibilidades gráficas oferecidas pelos jogos mais modernos. “Se a pesquisa obteve bons resultados com um background dos anos 1980, seria fascinante ver o que é possível com um jogo especialmente desenvolvido para esse fim, mas com um background do século 21”, cogitou.
No entanto, talvez a maior importância do estudo seja reforçar a enorme capacidade plástica do cérebro, mesmo em idades avançadas. Para Trelle, isso deveria servir de incentivo para que todos nós buscássemos atividades capazes de estimular nossa cognição ao longo de toda a vida. “Os jogos são só uma opção, mas há alternativas mais sociais, como aprender uma nova língua ou a tocar um instrumento musical, que talvez até gerem benefícios mais generalizados do que games muito específicos”, avaliou.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line