Um modelo de ocupação sustentável da Amazônia

É possível que populações com complexos padrões de desenvolvimento se estabeleçam na Amazônia sem devastar o meio ambiente. Isso é o que revelam legados deixados por uma civilização pré-colombiana que chegou à região por volta do século 9. Relatos indígenas e vestígios arqueológicos mostram como esse povo se organizava e apontam um modelo de ocupação sustentável da Amazônia praticado há mais de cinco séculos.

 

O padrão atual da aldeia Kuikuro (Alto Xingu), com uma praça central e estradas, é similar ao encontrado em aldeias pré-colombianas (fotos: cortesia Michael Heckenberger)

A estrutura dessa civilização amazônica foi descrita por um grupo interdisciplinar de pesquisadores brasileiros e americanos, que contou com a participação de dois índios da tribo dos Kuikuro, localizada no Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso.

O estudo, publicado na revista Science de 19 de setembro, é fruto de cerca de dois anos de trabalhos de campo e da sistematização das pesquisas individuais dos membros da equipe. O autor principal do artigo — o arqueólogo americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, promove estudos na região desde os anos 1990, quando iniciou seu doutorado.

Os sítios arqueológicos estudados fazem parte do território dos Kuikuro, no Alto Xingu. Os povoamentos pré-colombianos revelaram uma organização surpreendente: as aldeias eram densamente povoadas, se interligavam em estrutura de rede, por meio de estradas largas, longas e retas. Internamente, eram constituídas por uma praça central circundada por uma valeta profunda usada para proteger a comunidade aldeã. Em um dos maiores sítios encontrados, a praça central era circundada por duas valetas de proteção e uma estrada com cerca de 5 km de extensão ligava duas aldeias.

Segundo o etnólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e co-autor do artigo, o padrão dessas aldeias é muito similar ao das atuais, que ainda conservam as praças centrais, por exemplo. Essa estrutura se repete em diversos sítios arqueológicos, o que indica um mesmo complexo cultural na região do Xingu. As aldeias atuais são muito menores em extensão e não possuem as valetas defensivas.

 

Reconstrução de aldeia de civilização pré-colombiana que ocupou a região do Alto Xingu antes da chegada dos europeus à América (ilustração: Jim Railey)

A pesquisa revela uma Amazônia marcada pela ação humana, antes da chegada dos europeus ao país. “A idéia da floresta virgem não funciona muito bem”, argumenta Carlos Fausto. “Nas áreas estudadas, a floresta sofreu a ação de uma ocupação humana diferente da nossa, que se mostrou muito mais sábia na relação com o ambiente. Havia ali sociedades politicamente complexas e detentoras de um conhecimento que devemos partilhar, pois precisamos de alternativas para a sustentabilidade e desenvolvimento da Amazônia.”

O mapeamento da região dos sítios arqueológicos foi realizado com o auxílio de alta tecnologia (satélites GPS de precisão submétrica) e com a orientação dos índios locais, que já identificavam essas estruturas em seu território. Em alguns trechos é possível identificar a olho nu marcas dessas civilizações, como a chamada ‘terra preta’, formada a partir do ‘lixo orgânico’ das antigas aldeias, as alterações na vegetação do lugar ou as elevações no terreno, que identificavam os ‘acostamentos’ das estradas ou as valetas de proteção.

Os dois chefes Kuikuro são co-autores do artigo da Science . Segundo Carlos Fausto, eles representaram importante papel na mediação entre a equipe e a tribo. Atuaram também na localização dos sítios e nas atividades de mapeamento. No entanto, o olhar dos índios sobre a origem das aldeias pré-colombianas não coincide com o da ciência ocidental. “Eles têm mitos para explicar as origens das valetas, por exemplo”, conta Fausto. “Nossas hipóteses não são as mesmas que as deles.”

Fábia Andérez
Ciência Hoje On-line
19/09/03

 

 

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