Um ‘novo’ tipo de câncer

O câncer de cabeça e pescoço é o quinto no ranking de neoplasias mais incidentes na população mundial. Ao todo, cerca de 780 mil novos casos surgem todos os anos, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca). As áreas atingidas são as cavidades bucal e nasal, faringe, laringe, glândulas como as da tireoide e cordas vocais. Um dos grandes especialistas do mundo na área, o médico egípcio Hisham Mehanna esteve no Brasil e conversou com a CH On-line sobre suas pesquisas e os avanços em novos tratamentos e intervenções cirúrgicas para a doença.

Mehanna é diretor do Instituto de Estudos e Educação de Cabeça e Pescoço (InHanse, na sigla em inglês) e do Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. O médico atua em novas abordagens terapêuticas contra o câncer, como a busca por biomarcadores tumorais capazes de permitir a identificação do tratamento mais indicado para o paciente, ao mesmo tempo em que aposta no desenvolvimento de cirurgias menos invasivas.

Como forma de incentivar o intercâmbio de conhecimento entre Brasil e Inglaterra, Mehanna destacou a importância da parceria firmada em outubro entre o Inca e a Universidade de Birmingham, que vai estabelecer uma série de iniciativas nos setores de ensino e pesquisa, principalmente em relação a tumores na faringe, recentemente associados ao papilomavírus humano (HPV).

Hisham MehannaCH On-line: Em que abordagens clínicas e laboratoriais a sua equipe atua?
Hisham Mehanna: Nosso grupo trabalha em diversas frentes. Na pesquisa translacional, estudamos os genes de um tumor, em busca de melhores técnicas de diagnóstico e tratamento. Realizamos ensaios clínicos em humanos com tumores ainda em estágio inicial, para a prescrição de drogas, além de avaliar a funcionalidade de novos medicamentos. A partir desses resultados, buscamos o aperfeiçoamento dessas drogas, a fim de minimizar a toxicidade e aumentar a qualidade de vida da pessoa.

Uma de suas especialidades é a cirurgia de reconstrução microvascular. Como ela funciona?
Eu me especializei nesse tipo de cirurgia na qual se retira o tumor de áreas como o maxilar e a língua, substituindo-o pelo que chamamos de tecidos microvasculares – geralmente pedaços pequenos da coxa, músculo e vasos sanguíneos.

Um paciente com tumor na língua não consegue falar ou engolir direito. Na cirurgia, implantamos o pedaço da coxa na língua e reconectamos os vasos sanguíneos daquele tecido. A vascularização é fundamental para que o tecido não morra depois da cirurgia. É uma operação complicada, minuciosa, que requer inclusive uso de microscópio e pode chegar a 12 horas de duração, então o paciente precisa estar em boas condições clínicas. Mas é uma iniciativa bem-sucedida em 95% a 98% das vezes, ou seja, oferece boas chances de sobrevivência.

Suas pesquisas também envolvem a identificação de biomarcadores para o câncer de cabeça e pescoço. Como eles podem ajudar no tratamento personalizado dos pacientes?
Os biomarcadores são moléculas biológicas que precisam ser identificadas dentro do tecido tumoroso, numa biópsia. Eles vão nos ajudar a selecionar quais pacientes têm maiores chances de recuperação com cada tratamento. A maioria dos pacientes realiza quimioradioterapia, mas em 50% das vezes essa abordagem não funciona. O grande problema é que não sabemos identificar previamente quem responderá ao tratamento.

A maioria dos pacientes realiza quimioradioterapia, mas em 50% das vezes essa abordagem não funciona

Outro desafio é a caracterização detalhada dessas moléculas, porque pesquisadores de todo o mundo precisam identificá-las. Isso se torna ainda mais difícil, dada a heterogeneidade dos tumores: mesmo biópsias de duas pessoas que tenham o mesmo tipo de câncer são bem diferentes entre si. Ainda não temos bons biomarcadores para utilizar em pesquisa, mas estamos aperfeiçoando sua identificação.

Você também estuda a ligação do câncer de orofaringe com o HPV. É um quadro que mudou nos últimos anos…

Esse tipo de câncer, que atinge as amígdalas e pode chegar às vias nasais e ouvidos, é um dos mais prevalentes no Ocidente. No Reino Unido, o número de casos dobrou se compararmos os intervalos de 1996 a 2006 e de 2006 a 2011. Além disso, no primeiro período, a cada dez pessoas, quatro tinham HPV (as chamadas HPV+), enquanto no segundo 16 de cada 20 pacientes eram HPV+. Ou seja, não apenas a taxa de incidência do câncer se multiplicou, como também o número de casos originados pelo vírus. Não sabemos quando isso vai parar.

Essas diferenças estão associadas a uma mudança no próprio perfil dos pacientes atingidos pela doença?
Sem dúvida. O perfil dos casos também mudou muito nos últimos cinco anos, justamente por sua conexão com o HPV. Antes era uma neoplasia mais associada a causas químicas, que atingia pessoas mais idosas, geralmente viciadas em tabaco ou álcool a vida inteira, em condições financeiras mais precárias. Agora, a causa mais comum é infecciosa.

Os pacientes são, em geral, jovens, muitas vezes no início da carreira, com filhos para cuidar, querendo voltar logo ao trabalho. O que pode ser embaraçoso é o jeito como eles recebem a notícia, porque a primeira informação relacionada a esse tipo de câncer que aparece na internet é ‘sexo oral’ e ‘HPV’. No início, não sabíamos lidar com o assunto, mas hoje já informamos que pode ser isso, como também outras causas que ainda estão sendo investigadas.

Cigarro
O tabagismo e o alcoolismo deixaram de ser os principais responsáveis por tumores na cabeça e no pescoço, que hoje têm uma forte conexão com o HPV. (foto: Paolo Neo/ Wikimedia Commons)

A relação crescente com um vírus sexualmente transmissível evidencia, na sua opinião, a importância de fatores culturais na prevalência desse câncer em diferentes populações?
Podemos fazer essa relação sim. Por alguma razão, por exemplo, ele se tornou uma das principais causas da doença nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Encontramos mais casos no Ocidente do que no Oriente, até na Europa ocidental existem mais casos da doença do que na parte oriental. Nos Estados Unidos, a incidência de câncer de orofaringe entre homens brancos é bem maior que entre negros. Isso se deve a uma combinação de fatores, muitos deles relacionados a práticas culturais e sexuais, como o sexo oral. Ainda não temos evidências, mas é um dado importante, pois mostra diferenças até mesmo dentro de um país.

O câncer originado pelo vírus é mais complexo?
Atualmente, 95% dos casos mundiais de câncer de orofaringe são originados pelo vírus. No entanto, surpreendentemente, os pacientes HPV+ respondem melhor ao tratamento quimioradioterápico do que os outros: em média apresentam três vezes menos risco de morrer do que os casos não associado ao vírus, os HPV-.

Existe alguma outra intervenção para esses casos, além da quimioradioterapia?
Sim, uma cirurgia nova que é feita com um braço-robô. Antes, precisávamos dividir a mandíbula ao meio, uma técnica muito invasiva. Agora existe esse braço, uma tecnologia implementada nos Estados Unidos em 2010, que dá mais acesso ao interior da boca e garganta para retirar o tumor. Imagine ‘Edward, mãos de tesoura’, só que com três braços: um deles segura uma câmera, os outros dois retiram o tumor. A câmera mostra detalhes que o olho humano não conseguiria ver e a mão do robô corta com precisão, o que permite que o paciente saia mais rápido do hospital e se recupere mais depressa.

Como selecionar as terapias para os pacientes? Nesse ponto, os biomarcadores ajudariam muito

O problema é que muitas pessoas ainda precisam fazer tratamento quimioradioterápico depois. Então, voltamos à questão: como selecionar as terapias para os pacientes? Nesses casos, não seria melhor ter feito o tratamento com drogas desde o início? Nesse ponto, os biomarcadores ajudariam muito. Se o tumor é pequeno, a cirurgia funciona bem, mas depende de caso para caso.

Em relação à produção de novas drogas, que iniciativas vêm sendo feitas?
A indústria farmacêutica não se interessava muito pelo câncer de cabeça e pescoço, já que era uma doença associada a homens mais velhos e sem perspectivas financeiras. Hoje, com o aumento do número de casos e a mudança de perfil dos pacientes, o interesse aumentou e diversas drogas novas estão chegando ao mercado. Muitas atuam como inibidores do receptor do fator de crescimento da epiderme [EGFR, na sigla em inglês], já que mutações associadas à atividade exagerada do EGFR podem estar relacionadas ao câncer.

Outras pesquisas buscam entender como o câncer de cabeça e pescoço se relaciona com o sistema de defesa do corpo. Há estudos que também indicam que ele ‘se esconde’ do sistema imunológico, assim como outros tipos de câncer, por não expressar os antígenos leucocitários humanos [HLA, na sigla em inglês], que, em determinada quantidade na superfície da célula, ativam as células de defesa. Os tumores têm muitas maneiras e ‘truques’ para ‘enganar’ o sistema imune. Algumas novas drogas procuram ‘desmascarar’ esse tumor, mas a abordagem mais correta deve considerar todos os tipos de intervenção.

Em que sentido a parceria que está sendo firmada entre o Inca e a Universidade de Birmingham vai contribuir para análises laboratoriais e clínicas desse tipo de câncer?
A Universidade de Birmingham será o primeiro parceiro britânico do Inca. A base da parceria vai ser unir o ponto forte de cada instituição. Queremos manter um programa de ensaios clínicos em tecidos tumorais, que será realizado tanto pelo Inca quanto pela Universidade de Birmingham. O Inca tem um trabalho extenso em epigenética, por exemplo, e nós somos fortes em estudos genômicos, então vamos atuar em parceria na realização desses procedimentos. Vamos funcionar como um centro fortalecido.

Com um sistema de bolsas, vamos promover o intercâmbio de estudantes entre as duas instituições, para troca de conhecimentos. Nossos alunos poderão, por exemplo, vir ao Brasil para acompanhar os procedimentos cirúrgicos com o braço mecânico, área em que o Inca tem a participação mais expressiva do país.

Oportunidade de aprendizado
Para o farmacêutico Luis Felipe Pinto, coordenador de pós-graduação em oncologia do Instituto Nacional do Câncer, a parceria com a Universidade de Birmingham vai ajudar o Brasil a entender como funciona aquele que considera o melhor sistema público de saúde do mundo, o inglês. Pinto afirma que os alunos voltarão com uma experiência muito rica, com potencial para alavancar o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

“O jeito como o câncer é tratado até hoje é errado. É como se tivéssemos um exército de pessoas vestido com a mesma roupa de tamanho igual”, avalia. “Mas são pessoas diferentes, assim como os tumores também o são”, explica. O desafio, segundo ele, é conseguir traduzir isso para a prática clínica, com a identificação das características de cada tumor e a indicação do tratamento mais adequado por meio dos biomarcadores. “A identificação dessas moléculas evitaria gastos públicos desnecessários”, aponta o farmacêutico.

Segundo Pinto a maioria dos casos de câncer de cabeça e pescoço do Brasil é tratada pelo Inca, e a instituição brasileira é a que mais realiza cirurgias com o braço mecânico no mundo: já foram mais de mil pacientes desde 2011. “Os investimentos em câncer sempre precisam crescer, porque nunca se pode prever quando alguma nova doença vai se relacionar com o câncer, a exemplo do HPV”, diz. “Contamos com essa parceria para identificar, também, o número de casos de tumores causados pelo vírus”, complementa.