Uma doença democrática

 



Número de municípios com casos autóctones de dengue na região Sul do Brasil (1999-2004)

O mito de que o Sul do Brasil é imune à dengue está sendo derrubado por um trabalho que investiga a dispersão da doença na região. Segundo a pesquisa, o aquecimento gradual da área onde se encontram os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul tem garantido condições climáticas adequadas para que os mosquitos transmissores da dengue se reproduzam também nessa parte do país. “A dengue não é uma doença desta ou daquela região; para existir, depende do clima tropical-subtropical”, afirma o geógrafo Francisco de Assis Mendonça, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do estudo.

Segundo Mendonça, o estudo destaca a relação entre o aumento do número de casos de dengue e o aquecimento da região. Análises de dados climáticos de mais de 230 estações meteorológicas do Paraná (onde a pesquisa está mais avançada) revelaram que de 1970 para cá a temperatura do estado aumentou aproximadamente 1,5ºC. “Resta saber se o evento é conseqüência de algum fenômeno regional ou do aquecimento global, embora as duas escalas estejam relacionadas”, pondera o pesquisador.

A dengue foi erradicada no Brasil nos anos 1950, mas reapareceu no Rio de Janeiro nos anos 1980. Na região Sul, até aquela década os únicos registros eram de casos importados (os infectados vinham de fora). O aparecimento da doença na região na década de 1990 coincidiu com o fato de que essa foi, de acordo com especialistas, a década mais quente nos últimos 200 anos.

O Paraná foi o estado com o maior número de registros. Os primeiros casos autóctones (surgidos na própria região) ocorreram em 1993 em Ibiporã, norte do estado. Mas a doença só adquiriu proporções epidêmicas 10 anos depois, na vizinha Londrina, onde foram confirmados 9 mil casos. ”O ano de 2003 foi excepcional no Paraná, sobretudo em Londrina”, diz Mendonça. Segundo ele, a dengue pode ter atingido 10% da população do município, levando-se em conta que um expressivo percentual de pessoas doentes não procura socorro médico, o que inviabiliza as notificações.

Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde o levantamento ainda não está completo, o número de casos de dengue é bem menor que os registrados no Paraná. Mas o crescimento desse número na década de 1990 é igualmente preocupante. “Pretendemos agora ‘passar um pente fino’ nos dois estados para concluir a pesquisa”, diz Mendonça. O geógrafo adianta que 2002 foi o ano mais preocupante em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, quando foram registrados respectivamente cerca de 400 e 500 casos, a maioria deles importados.

As duas espécies de mosquitos que transmitem o vírus da dengue: Aedes aegypti , predominantemente urbana (esq.), e Aedes albopictus , mais comum no meio rural (dir.).

Um mosquito exigente
Devido às campanhas veiculadas na televisão, o mosquito Aedes aegypti ficou conhecido como o vilão que transmite o vírus da dengue para o homem. Na verdade, porém, o mosquito divide esse ‘mérito’ com um parente do mesmo gênero: o Aedes albopictus . Enquanto o primeiro é preferencialmente urbano, o segundo prolifera-se na zona rural. Como a doença é mais combatida nas cidades, o A. aegypti ganhou mais fama.

As diferenças acabam por aí. Ambos os mosquitos são de clima tropical-subtropical e dependem de condições específicas para proliferar: chuvas intermitentes e temperatura superior a 18ºC. É no intervalo entre as chuvas, quando os recipientes perdem água devido à evaporação, que o mosquito bota seus ovos na borda. Segundo Mendonça, essas condições existem no Sul entre novembro e abril. “No dia de finados (em novembro), por exemplo, muita gente deposita vasos de flores nos cemitérios, criando possíveis focos da doença”, afirma. Mas é entre março e abril, no final da estação chuvosa, com precipitações menores e temperaturas ainda altas, que a dengue se espalha com mais intensidade.

Al otro lado del rio
Em 1999, o biólogo inglês Paul Reiter liderou um estudo sobre a dengue na fronteira dos Estados Unidos com o México. Separadas pelo rio Grande, as cidades de Laredo, no Texas, e de Nuevo Laredo, no México, tinham as mesmas condições necessárias ao desenvolvimento da doença. Mas esta só se desenvolveu em Nuevo Laredo. Enquanto os texanos viviam em ambientes climatizados e usavam carros com ar-condicionado – mantendo-se distantes do mosquito da dengue –, o povo de Nuevo Laredo ficava à mercê das picadas do inseto. As condições de vida das pessoas fazem toda a diferença!

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os mosquitos contaminados transmitem a doença às vítimas de sua picada, sem fazer distinção de raça, credo ou posição social. Mas na prática as classes mais baixas são as mais atingidas. “Não há como controlar o vetor sem investir na melhoria da qualidade de vida das pessoas”, diz o geógrafo. Para ele, o estudo do biólogo inglês Paul Reiter sobre a incidência da dengue na fronteira dos Estados Unidos com o México exemplifica o ‘sucesso’ do mosquito entre os mais pobres (ver ‘Al otro lado del rio’).

Software
Os estudos da equipe de Mendonça tiveram início em 1999 e se intensificaram em 2003, quando o governo federal lançou um edital para selecionar novos projetos voltados para o combate à dengue. O trabalho envolveu a coleta, o tratamento e a equalização dos dados do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais de saúde e de outras instituições que também se dedicam ao estudo do problema. Um dos produtos finais da pesquisa é o desenvolvimento de um software para monitorar a evolução da doença em relação a condições socioambientais urbanas: previsão climática, modo de vida e hábitos urbanos das populações humanas etc. Inédito, o software vai identificar possíveis focos da doença e orientar previamente a política do governo nessas áreas.

Murilo Alves Pereira
Especial para CH On-line / PR
07/03/2006