Atualmente, as doenças ainda são, em sua maior parte, tratadas de forma ampla, sem considerar as diferenças genéticas entre os indivíduos. Além disso, os tratamentos não levam em conta que uma mesma doença, como o câncer de mama, pode estar associada a genes variados. Esse cenário em que as características únicas dos pacientes e das doenças não auxiliam na definição da abordagem terapêutica adotada deve mudar graças à terceira revolução da medicina.
É assim que o biólogo israelense Aaron Ciechanover, laureado com o Nobel de Química de 2004 por elucidar processo de degradação e reciclagem de proteínas, batizou o crescente uso dos testes genéticos para orientar o tratamento de doenças. Em sua palestra, ministrada na terça-feira (02/07) no 63º Encontro de Prêmios Nobel em Lindau, na Alemanha, Ciechanover falou sobre essa medicina personalizada e alguns de seus desafios.
Para o biólogo, que trabalha no Instituto de Tecnologia de Israel, a primeira revolução da medicina ocorreu nas décadas que precedem 1960. Ela foi caracterizada por descobertas acidentais, como a da penicilina, o primeiro antibiótico da história. A substância foi descoberta pelo biólogo escocês Alexander Fleming (1881-1955), quando este esqueceu uma placa de Petri aberta e percebeu que as bactérias cultivadas nela não cresciam próximas a um fungo que havia contaminado a placa.
Já a segunda revolução ocorreu entre os anos 1970 e 2000 e foi marcada pela maciça triagem de grandes bibliotecas de compostos químicos na esperança de se encontrar alguma substância com potencial médico. Esse foi o caso das estatinas, amplamente usadas no controle dos níveis de colesterol do corpo. “Nesses dois períodos, a descoberta ocorria antes que se conhecesse o mecanismo de funcionamento das drogas, sendo estes elucidados mais tarde”, comentou Ciechanover.
Com a observação das diferentes respostas dos indivíduos a tratamentos iguais, percebeu-se que doenças como o câncer, mesmo um tipo específico, têm variações. “Assim, existe câncer de mama A, B, C etc., com perfis genéticos distintos”, disse o biólogo.
Segundo ele, essa constatação está levando à terceira revolução da medicina, que já se manifesta pela realização de testes genéticos para identificar o potencial de um indivíduo desenvolver determinada doença e auxiliar na escolha de seu tratamento. “A medicina está deixando de ser ‘tamanho único’ para ser pessoal”, ilustrou Ciechanover.
Os quatro ‘P’s
O biólogo afirmou que a terceira revolução é caracterizada por quatro ‘P’s: personalizada, previsível, preventiva e participativa. Nessa nova fase da medicina, o conhecimento do perfil genético do paciente e do mecanismo de ação da droga permitirá não apenas escolher o medicamento mais apropriado, como também saber se aquela pessoa terá alguma reação adversa.
“Reações adversas a drogas estão entre a quarta e a sexta causa de mortes nos Estados Unidos”, alertou Ciechanover. Munidos dessas informações, pacientes e profissionais de saúde poderão discutir a melhor abordagem para lidar com a doença ou medidas que ajudem a preveni-la.
Segundo o pesquisador, essa era da medicina personalizada será caracterizada pelo emprego de tecnologia de sequenciamento genético mais rápida e barata, capaz de sequenciar a totalidade dos genes de um ser humano (genoma) em algumas horas e por menos de mil dólares.
Haverá ainda a identificação e caracterização de marcadores moleculares para as várias doenças, assim como o desenvolvimento de drogas que modulem a atividade desses alvos biológicos. “Mas o genoma é só o começo; o perfil proteico e metabólico – o proteoma e o metaboloma – também serão importantes”, ressaltou o biólogo.
Vazamento de genoma
Os obstáculos para o uso de testes genéticos na medicina são inúmeros e Ciechanover listou vários de aspecto técnico, como o fato de diversas doenças terem origem multigênica, ou seja, serem causadas por mais de um gene. A dificuldade de se realizarem experimentos em humanos e a ausência de modelos animais confiáveis complicam ainda mais a situação. “Já salvamos milhares de camundongos de câncer, mas na hora de transferir esse conhecimento para humanos, a coisa fica mais complexa”, brincou o biólogo.
Mas o grande problema para Ciechanover é a questão bioética. Uma medicina personalizada requer grandes bancos de dados com registros dos genomas das pessoas. “Quem garante a segurança dessa informação?”, indagou. “Lembrem-se: são dados que não só ajudam no tratamento, mas também indicam a possibilidade de doenças futuras.” Ele acredita que poderemos ver no futuro vazamentos de genoma similares aos que ocorrem com outros tipos de informações sigilosas.
O biólogo alertou ainda para o fato de a tecnologia de diagnóstico estar se movendo mais rápido do que o resto da medicina e citou o caso da atriz norte-americana Angelina Jolie, que recentemente anunciou possuir um marcador genético que aumenta consideravelmente suas chances de desenvolver câncer de mama e se submeteu à retirada preventiva de ambos os seios.
Embora tenha elogiado a coragem da atriz, Ciechanover ressaltou que, por um lado, Jolie resolveu seu problema, mas agora sua filha tem outro: “Quando ela completar 16 anos, deve se testar? Se o teste for positivo, o que fazer?” E concluiu: “Não conhecemos o futuro e gostamos disso.”
Fred Furtado*
Ciência Hoje
* O jornalista viajou a Lindau a convite da organização do evento.