Uma outra história dos mamíferos

Há 65 milhões de anos, um grande evento de extinção encerrou o domínio dos dinossauros sobre a Terra. Essa mudança, no entanto, também parece ter dado início a outra história evolutiva, que teve como primeiro protagonista um pequeno animal comedor de insetos, ancestral comum dos mamíferos placentários – o mais diverso grupo de animais do planeta, que inclui as baleias, os morcegos, eu e você.

Essa foi a hipótese reforçada pelo maior estudo evolutivo já realizado com mamíferos, divulgado na edição desta semana da revista Science. A pesquisa combinou análises morfológicas e moleculares para traçar uma detalhada árvore evolutiva de 86 espécies de animais desse grupo, 40 delas extintas, e permitiu, ainda, identificar as prováveis características de um hipotético e longínquo ancestral comum de todos os placentários. Os resultados, no entanto, contrariam teorias de base puramente genética, que situam o primeiro momento de grande diversificação do grupo milhões de anos antes do previsto pelo estudo em questão.

A iniciativa, que reuniu colaboradores de todo o mundo, produziu o maior acervo morfológico sobre mamíferos já reunido. No total, foram avaliadas cerca de 4.500 características das espécies, desde aspectos de seus esqueletos, órgãos internos, cérebros e músculos até a quantidade e o tipo de dentes que tinham e os padrões de seus pelos.

Confira o vídeo produzido pelo Museu Americano de História Natural, que traz mais detalhes do estudo

As informações morfológicas foram comparadas com os dados genéticos disponíveis sobre as espécies analisadas. Dessa forma, os pesquisadores estabeleceram as prováveis relações evolutivas entre as espécies e uma nova árvore genealógica para o grupo. A partir dessa nova base filogenética foi possível predizer as características do provável mais recente ancestral comum de todos os mamíferos placentários. Esse ‘ancestral placentário hipotético’ teria, segundo os pesquisadores, uma dieta composta por insetos, um nariz carnudo, pelo amarronzado e seria pouco maior que um camundongo.

Diferenciação tardia

A partir das evidências fósseis, os pesquisadores também chegaram àquele que seria o primeiro grande momento de diferenciação dos mamíferos placentários: o fim do período Cretáceo, logo após o grande evento de extinção que eliminou os dinossauros e boa parte da biodiversidade do planeta.

O primeiro grande processo de diferenciação dos mamíferos placentários teria ocorrido em ritmo acelerado e logo após o grande evento de extinção que eliminou boa parte da biodiversidade do planeta

Nesse mundo em transformação, chama a atenção o ritmo acelerado do processo de especiação das espécies. “Parece ter sido um período muito intenso, com a formação de muitas das principais linhas evolutivas dos mamíferos placentários num intervalo de cerca de 200 mil anos”, explica Fernando Perini, biólogo da Universidade Federal de Minas Gerais e coautor do estudo.

Segundo o biólogo Marcelo Weksler, do Museu Nacional, também coautor da pesquisa, as mudanças nos biomas globais provocadas por esse evento podem ajudar a explicar essa explosão de mamíferos. “Além de afetarem plantas e insetos, principais fontes de alimentos dos mamíferos da época, as mudanças ambientais podem ter proporcionado novas oportunidades evolutivas”, afirma.

Perini lembra que o processo não ocorreu apenas com os mamíferos; aves, insetos e até pequenos répteis também passaram por processos intensos de diferenciação no período.

Polêmicas no Cretáceo

A hipótese defendida pela pesquisa contraria muitos estudos recentes de base molecular. A partir de cálculos das taxas de evolução do DNA, esses trabalhos defendem que o processo de especiação teria se iniciado até quase 40 milhões de anos antes do previsto no artigo.

Para a autora principal do artigo, Maureen O’Leary, do Museu Americano de História Natural, o problema dos estudos moleculares é que envolvem muitas suposições sobre taxas de variação genética ao longo do tempo. Weksler também destaca a falta de provas que sustentem os argumentos moleculares. “Eles empregam estimativas para projetar o que teria ocorrido no passado, mas não há registros fósseis da diversidade dos placentários antes do fim do Cretáceo”, avalia. “Apesar disso, creio que o debate está apenas no início e ainda haverá muita polêmica sobre esse ponto.”

Ukhaatherium nessovi
O cretaceano ‘Ukhaatherium nessovi’, descoberto em 1994 no deserto de Gobi (China), foi um dos muitos mamíferos placentários analisados no estudo, que coloca em xeque teorias anteriores baseadas em dados moleculares. Ao unir robustas informações morfológicas e projeções genéticas, pesquisadores traçaram uma detalhada árvore evolutiva de 86 espécies de animais desse grupo. (foto: S. Goldberg e M. Novacek/ AMNH)

A controvérsia também envolve o processo de dispersão desses animais pelo mundo. Hipóteses anteriores afirmavam, por exemplo, que o subtipo Afroteria, que conta com diversos animais típicos da África, como o elefante e o peixe-boi, teria aparecido ainda no Cretáceo e estaria restrito àquele continente. No entanto, o estudo atual defende que o grupo teria surgido bem mais tarde e seria originário das Américas, numa época em que os continentes já estavam se separando.

“A história evolutiva parece ter sido muito mais complexa do que imaginávamos e devia haver formas de dispersão pelos continentes em formação”, afirma Perini. “O problema para determinarmos isso é a falta de registros fósseis de muitas regiões, como parte da América do Sul e da África.”

Divisor de águas

Para os pesquisadores, tão importante quanto os resultados do estudo foi a articulação necessária para sua realização, que levou à construção do rico acervo morfológico com mais de 12 mil imagens, concentrado no Morphobank, plataforma digital que facilitou o trabalho conjunto dos envolvidos. “A compilação desse banco foi um grande desafio pela necessidade de chegar a consensos sobre as características a serem avaliadas e de estabelecer padrões de comparação entre animais tão diversos”, avalia Perini.

Para o biólogo, o acervo ajudará a modificar o perfil dos futuros estudos na área, que até hoje dispunham de muito mais dados genéticos do que morfológicos. Os próximos passos devem incluir a análise de mais espécies e a proposição de novas características morfológicas que enriqueçam a classificação dos animais. A iniciativa integra o projeto ‘Montando a árvore da vida’ (Atol, na sigla em inglês), da Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos, que tem como objetivo promover a pesquisa da biodiversidade e evolução de plantas e animais.

E a placenta?
Característica básica da infraclasse de mamíferos estudada, ainda não se sabe exatamente a real importância da placenta na evolução. Perini explica que alguns grupos veem seu desenvolvimento como uma vantagem evolutiva crucial, que explicaria a enorme diversidade dos placentários e o número restrito dos outros tipos de mamíferos, enquanto outros relacionam esse predomínio a fatores geográficos, já que a maior parte dos marsupiais se desenvolveu em ilhas isoladas, como a Oceania e a América do Sul, o que limitou sua dispersão e os tornou menos competitivos do ponto de vista evolutivo.  

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line