Única meta razoável: erradicação

A malária ainda é um flagelo para grande parcela da população mundial, mas alguns pesquisadores e instituições ao redor do mundo miram alto: pretendem colocar a doença na lista das moléstias erradicadas do planeta nas próximas décadas. Para o novo diretor da Malaria Vaccine Initiative (MVI), grupo que articula esforços internacionais no desenvolvimento de uma vacina contra a doença, o passo inicial pode ser dado em breve, com a aprovação do primeiro imunizante antimalárico, o RTS,S, que, apesar de garantir proteção apenas limitada, pode abrir as portas para novas gerações de vacinas.  

Produzida pela GlaxoSmithKline (GSK), a RTS,S recebe o apoio do MVI, iniciativa do Program for Appropriate Technology in Health (Path), organização internacional sem fins lucrativos que visa transformar a saúde mundial pela inovação. A vacina está prestes a concluir sua terceira e última fase de testes clínicos e busca aprovação da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, do inglês) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para ser lançada no mercado em 2015. Ela tem como alvo o Plasmodium falciparum, responsável pelos casos mais graves da doença e comum na África, onde ocorre a maioria das centenas de milhares de mortes anuais causadas pela malária

Em 2011, os resultados da RTS,S apontaram uma proteção de 56% em crianças que receberam as três doses da vacina entre 5 e 17 meses e 47% menos casos severos

A última fase de testes clínicos envolveu mais de 15 mil crianças de sete países do continente africano – grupo mais atingido pela doença. Em 2011, os resultados da RTS,S apontaram uma proteção de 56% em crianças que receberam as três doses da vacina entre 5 e 17 meses e 47% menos casos severos. Entre as crianças de 6 a 12 semanas de vida, a proteção foi de 31%. Em outubro de 2013, novos dados mostraram que a proteção induzida pela vacina 18 meses após a terceira dose foi de 46%, com 36% menos casos severos e 42% menos hospitalizações nas crianças entre 5 e 17 meses vacinadas. No grupo mais novo, a eficácia ficou em 27%.

Em entrevista à CH On-line, o bioquímico Ashley Birkett, que em outubro do ano passado assumiu o posto de diretor do MVI, afirmou que os resultados são positivos, em especial no contexto da epidemia: a grande prevalência da malária na região faz com que mesmo uma vacina com menor eficiência tenha impacto significativo na qualidade de vida da população. Birkett ressaltou, ainda, que a RTS,S é apenas o mais avançado dos diversos imunizantes em desenvolvimento e destacou que, apesar da erradicação da doença ainda estar longe, o panorama pode mudar nas próximas décadas, com novas vacinas que atuem sobre outras partes do ciclo do plasmódio e também contra o Plasmodium vivax, variante mais importante na América e na Ásia – trabalho no qual a participação brasileira pode ser fundamental.

Entrevista-birkettCH On-line: Qual a grande dificuldade de chegar a uma vacina contra a malária?
Ashley Birkett: A questão é que estamos lidando com um parasita, com um ciclo de vida complexo, e não com um vírus ou uma bactéria, contra os quais temos um histórico de desenvolvimento de vacinas. Nunca desenvolvemos uma vacina eficiente contra um parasita humano. Apesar disso, evidências de estudos básicos com animais e células humanas mostram que é possível chegar a uma vacina eficiente contra a malária, por isso, temos confiança que será possível superar esse desafio.

Mesmo induzindo uma proteção relativamente modesta, a RTS,S pode começar a ser usada em breve. Por quê? 
A questão é que a malária provoca um estrago enorme nas populações para as quais a RTS,S é destinada. Cerca de 90% das mortes pela doença são entre crianças africanas pequenas, infectadas pelo P. falciparum. A eficiência da vacina conta apenas parte da história. As pessoas que vivem nas áreas endêmicas estão constantemente expostas ao parasita, em algumas áreas podem receber até uma picada infecciosa por dia. São 365 infecções por ano, mesmo com o uso de redes de proteção e inseticidas. Com uma taxa tão alta, essa proteção já representa uma redução de mais de 900 casos de malária para cada mil crianças vacinadas. É um impacto muito considerável. Não resolve o problema, mas adiciona uma nova camada de proteção, a ser combinada com outras intervenções, como deve ser qualquer estratégia de combate à doença.

A necessidade de três doses é um problema para a administração da vacina?
Sem dúvida. Na verdade, ainda estamos tentando estabelecer a longevidade da RTS,S. Na próxima fase, vamos experimentar uma quarta dose extra. Os dados são importantes por mostrar que ela funciona em campo, mas utilizar mais doses traz mais dificuldades. Temos trabalhado muito próximo dos sistemas de saúde locais, procurando levar em conta o calendário de imunizações já estabelecido, para não exigir novas mobilizações da população. O objetivo de testar doses com 6 a 12 semanas de vida foi uma tentativa de enquadramento. Mas o grupo que apresentou melhor resposta foi o de crianças entre 7 e 15 meses. Foi uma surpresa, que cria desafios adicionais. 

Criança africana
As crianças pequenas da África são o grupo mais atingido pela malária, por isso foram o foco inicial no desenvolvimento de vacinas contra a doença. (foto: World Bank Photo Collection/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)


Se a vacina precisa de muitas doses e o grau de proteção não é assim tão alto, é possível pensar na criação de cepas resistentes do plasmódio?

Isso é algo que precisamos avaliar. Como vimos no caso das drogas, perdemos algumas de nossas melhores alternativas devido ao desenvolvimento de protozoários resistentes. Em relação às vacinas o desafio é ainda maior, porque não há dados, é uma área nova. O alvo atacado pela RTS,S está localizado numa região muito conservada do parasita, que não costuma sofrer mutações e não observamos ocorrências de casos de resistência nos testes clínicos já realizados, mas precisamos continuar acompanhando.

Você acredita que a RTS,S será aprovada para utilização na África?
Essa não é uma decisão da MVI, mas da EMA e da OMS. O mais importante é avaliar seu custo-benefício, a forma como ela compete com outras intervenções. Fizemos de tudo para chegar a um imunizante com o máximo de eficiência possível no momento. A decisão deve considerar até as áreas onde a vacina será utilizada, se em toda a África ou apenas em algumas regiões. Uma garantia pública dada pela GSK, no entanto, é que o custo não será uma barreira, a empresa disponibilizará a RTS,S pelo menor preço possível, para que tenha um maior impacto.

Você acredita que a RTS,S é o início de uma solução para o problema da malária?
Sim, mas é apenas o começo. Por um lado, ela é muito importante, é a candidata vacinal mais avançada que temos hoje, de longe. Pelos próximos cinco ou dez anos, é o imunizante que pode nos dar o maior impacto em prevenção de casos e mortes. Mas há outras candidatas promissoras em estágios mais iniciais e estamos animados com as perspectivas. Novas estratégias podem utilizar a RTS,S modificada, por exemplo, mas também buscamos abordagens totalmente independentes.

Há uma nova visão sobre o problema representado pela malária hoje?
Nosso entendimento sobre a malária realmente mudou muito na última década. Ainda buscamos vacinas e medicamentos que reduzam os sintomas e evitem mortes, mas temos um objetivo final mais elevado: erradicar a doença. A guerra que travamos com o protozoário tem consumido enorme quantidade de recursos para tentarmos permanecer um passo à frente dele, com drogas e inseticidas. Precisamos adotar uma visão de longo prazo e acabar com o problema de vez, mesmo que a solução leve décadas para ser alcançada. Queremos que as próximas gerações possam apenas ler sobre a malária, assim como ocorre hoje com a varíola. 

Mosquiteiro
O desenvolvimento de vacinas contra a malária, cujo retorno comercial seria muito pequeno, se tornou possível com a ação de grandes doadores privados e a coordenação de organismos internacionais, como a MVI. (foto: Gates Foundation/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)


Nesse sentido, a MVI apoia o desenvolvimento de outras vacinas, com estratégias diferentes de combater a doença?

Sim, há várias alternativas. No passado, o foco era em imunizantes que prevenissem a manifestação clínica da doença e a morte, em especial associados ao P. falciparum. Mas agora seguimos também em outro rumo, buscamos vacinas que permitam a interrupção do ciclo de transmissão da malária e sua erradicação. São objetivos muito diferentes. Hoje convivem as duas estratégias: a busca por vacinas com altas taxas de eficiência para proteger as populações mais vulneráveis – e a RTS,S é um passo importante para esse objetivo – e o desenvolvimento de novos candidatos vacinais que interrompam a transmissão e tenham impacto maior por retirar o parasita de circulação.

E qual a diferença na forma como atuam esses diferentes tipos de vacina?
Elas são completamente diferentes. Essa é a vantagem de trabalharmos com um parasita que tem um desenvolvimento tão complexo, podemos atacar fases distintas de seu ciclo com vacinas diversas. Algumas, como a RTS,S, atuam na fase pré-eritrocítica, ou seja, quando o plasmódio se multiplica no fígado e antes que chegue à corrente sanguínea, evitando a manifestação clínica da doença e as mortes. Outras visam atuar sobre a fase sanguínea do parasita, reproduzindo a imunidade natural que pessoas que vivem em áreas endêmicas eventualmente desenvolvem. Elas não evitariam a infecção, mas levariam a manifestações mais brandas ou assintomáticas da malária. 

Outra possibilidade é desenvolver, no futuro, vacinas combinadas que possam tanto prevenir as formas clínicas da malária quanto bloquear sua transmissão

Uma terceira via, na qual estamos investindo cada vez mais, são as chamadas vacinas bloqueadoras de transmissão. Nesse caso, a ideia é induzir a produção de anticorpos que evitam a maturação do parasita no mosquito, o anófeles. Ou seja: o vetor, ao picar a pessoa vacinada, recebe anticorpos que impedem o plasmódio de completar seu ciclo no corpo do inseto. A vacina não impede a pessoa de ficar doente, nem diminui os efeitos da infecção, mas afeta a disseminação da malária por evitar que ela continue a se espalhar. É um gargalo muito pequeno, que afeta severamente a transmissão. Outra possibilidade é desenvolver, no futuro, vacinas combinadas que possam tanto prevenir as formas clínicas da malária quanto bloquear sua transmissão.

Se o objetivo é erradicar a malária, no entanto, o P. falciparum não pode ser o único alvo estudado. Como vão as pesquisas de vacinas contra o P. vivax?
De fato, o P. falciparum é muito mais comum na África e esse era o foco até aqui. Mas o P. vivax é muito importante em outras áreas do mundo, como o Brasil, onde 80% dos casos são causados por essa variante. Logo, não podemos erradicar a malária sem também erradicar o P. vivax. Também há uma percepção crescente de que essa variante não é tão mais benigna como acreditávamos, está cada vez mais associada a casos severos e mortes, um estímulo adicional na busca por vacinas. Para eliminar a malária, provavelmente precisaremos de vacinas combinas contra P. falciparum e P. vivax

Inseticida contra malária
Mesmo com uso de redes com inseticidas e remédios, a malária ainda causa grandes estragos (em especial na África) e consome infindáveis recursos na tentativa de permanecermos ‘à frente’ do parasita. (foto: Gates Foundation/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)


A malária é uma doença negligenciada e a África, um continente negligenciado. Uma pesquisa como essa é uma mudança muito grande nesse cenário?

É uma mudança crítica. No caso da malária, não havia incentivo ou motivação para a pesquisa de uma vacina. O parasita tem um ciclo de vida complicado, as chances de sucesso são baixas e os possíveis ganhos comerciais também. É nesse ponto que o investimento de instituições como a Bill & Melinda Gates Foundation se torna crucial, assim como o trabalho do MVI, que faz a ponte entre financiadores, comunidade científica e empresas farmacêuticas, que têm uma enorme expertise no desenvolvimento de vacinas. Esse engajamento de recursos financeiros e técnicos catalisa o trabalho.

Com um processo tão complexo e com poucas garantias, é importante atrair cada um dos atores envolvidos nesse desenvolvimento – universidades, empresas de biotecnologia e indústria farmacêutica – no momento certo? 
Com certeza, o timing é parte fundamental nesse processo. O que fazemos no MVI é reunir as peças necessárias desse quebra-cabeça e cada uma deve ser encaixada no momento preciso. O processo envolve muito risco, por isso, as companhias farmacêuticas não se interessam pelos primeiros estágios. Cabe à academia e às empresas de biotecnologia gerar dados pré-clínicos que despertem o interesse da indústria. Nosso trabalho é orientar esse extenso portfólio, selecionar as abordagens mais promissoras ainda nas fases iniciais – o que não é nada fácil e envolve decisões bem complicadas, mas garante o investimento em algo que possivelmente terá impacto. Esse processo reúne contribuições de muitos grupos – um identifica o alvo, o outro, o sistema de entrega ideal, por exemplo – e nenhuma organização poderia obter tudo isso sozinha. Os resultados atuais já mostram que o modelo funciona e é fundamental para obter vacinas contra doenças para as quais não há mercado.

Qual o papel que o Brasil tem a desempenhar nessa evolução?
O Brasil é um dos países com maior incidência do P. vivax no mundo, tem um histórico importante no desenvolvimento de vacinas e elas ocupam lugar de destaque em seu sistema de saúde. Estamos muito ansiosos para trabalhar em parceria mais direta com a comunidade científica brasileira, há um cenário perfeito para parcerias muito frutíferas. Mas ainda estamos começando a construir as pontes, conversando com grupos de pesquisa e esperamos transformar essa relação numa parceria formal no futuro. Mas tudo a seu tempo. Como eu disse, o timing é fundamental nesse processo. 

Errata: Diferentemente do que informou a primeira versão desta reportagem, na fase pré-eritrocítica o plasmódio se multiplica nas células do figado, para depois chegar à corrente sanguínea, quando surgem os sintomas clínicos. A RTS,S atua justamente nessa fase inicial da infecção.