Vai uma vacina aí?

 

Comer queijo em vez de tomar vacina para se proteger das doenças deve ser o sonho de muitas crianças. Anderson Miyoshi, pós-doutorando do Departamento de Biologia Geral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trabalha para realizá-lo. Há quatro anos, ele estuda a síntese de proteínas em bactérias lácticas, amplamente utilizadas pela indústria alimentícia na produção e conservação de produtos como leites fermentados, iogurtes, manteigas, queijos etc.

Desde os anos 80, com o advento da tecnologia do DNA recombinante, muitas pesquisas voltaram-se para o uso de bactérias como ’usinas celulares’ para a fabricação de proteínas por meio da expressão gênica[1]. Logo nos primeiros estudos, as bactérias lácticas, consideradas seguras para o consumo humano e animal, tornaram-se boas candidatas. “Entre elas, a Lactococcus lactis , usada principalmente na fabricação de queijos, mostrou-se uma das espécies de mais fácil manipulação genética”, conta Miyoshi.

Os sistemas de expressão testados, porém, utilizam marcadores de antibióticos e outros compostos potencialmente nocivos à saúde, o que restringe seu uso aos laboratórios. “Além disso, a legislação de vários países proíbe a presença desses compostos no produto final”, acrescenta o pesquisador.

Diante desse quadro, os grupos de pesquisa, sobretudo nos Estados Unidos e Europa, procuram desenvolver sistemas de expressão gênica que não façam uso de marcadores de resistência a antibióticos e sejam induzidos por substâncias mais econômicas e seguras. Os resultados, no entanto, não alcançaram a produção atingida pelos sistemas tradicionais, pois os promotores (moléculas responsáveis pela ativação do sistema) usados não eram tão eficazes.

Em seu doutorado, Miyoshi identificou, com o apoio de outros pesquisadores, um novo promotor. Após alguns testes, o grupo concluiu que a molécula era bastante eficaz e podia ser induzida pela presença da xilose — que, por se tratar de um açúcar, é segura para o consumo. Partiram, então, para a construção de um novo sistema, intitulado Xies (sigla em inglês para “sistema de expressão induzido por xilose”).

“Esse é o primeiro sistema de expressão voltado para uso em L. lactis que é induzido por uma substância segura, propicia elevados níveis de expressão gênica e pode ser ’desligado’ pela adição de um outro açúcar, a glicose”, explica o pesquisador. “Além de ser mais seguro que os atuais, o Xies é o primeiro sistema de expressão voltado para bactérias lácticas desenvolvido por brasileiros.”

Para que o Xies se torne totalmente seguro, é preciso eliminar os marcadores de resistência a antibióticos ainda presentes no sistema. Este é o atual objeto de pesquisa de Miyoshi, que estima alcançar resultados positivos dentro de um ano. Se tudo der certo, o Xies poderá então ser usado em laboratório para a síntese de várias proteínas.

Quanto ao uso das bactérias lácticas como veículos vacinais, o pesquisador é menos otimista: “Há uma resistência natural dos governos e da sociedade civil aos produtos que contêm organismos geneticamente modificados. A utilização das bactérias pela indústria ainda pode demorar 15 ou 20 anos”, calcula.

 

[1] Os sistemas de expressão gênica são instrumentos genéticos que possibilitam a síntese de proteínas de interesse biotecnológico em uma célula hospedeira (bactéria, levedura, célula de insetos, célula de mamíferos etc). 

O primeiro passo, a clonagem gênica, consiste na inserção do gene-alvo, ou seja, aquele que codifica a proteína desejada (como uma enzima ou um antígeno), numa pequena molécula de DNA chamada plasmídeo, formando o ’DNA recombinante’. 

Em seguida, a nova molécula é inserida na célula hospedeira, onde permanece como um material genético ’acessório’ e, quando o promotor é ativado por um ’indutor’, passa a sintetizar a proteína desejada. 

Catarina Chagas
Ciência Hoje On-line
08/06/04