Vale a pena cooperar?

Artigo de pesquisadora brasileira joga luz sobre uma questão ainda polêmica: que fatores levam à cooperação na natureza, comportamento observado de bactérias a seres complexos, como mamíferos? O modelo empregado para responder a essa pergunta poderá ajudar a entender por que um tumor maligno se desenvolve. Ou não.

A teoria da evolução pela seleção natural foi proposta no século 19 pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Grosso modo, ela defende que adaptações (enxergar cores, voar, ter olfato apurado, falar etc.) são características físicas e/ou comportamentais que aumentam as chances de um indivíduo sobreviver e, principalmente, deixar descendentes férteis.

A cooperação (ou altruísmo) traz benefícios para o grupo

Para nossos propósitos aqui, a chave, na definição acima, é o termo ‘indivíduo’. É consenso entre especialistas que a seleção natural age sobre ele – na linha ‘o que importa sou eu, e não o outro’. Se o que importa é o indivíduo, como explicar, então, a cooperação, comportamento bem documentado no mundo animal? Afinal, por que promover a causa alheia, aumentando as chances de o outro sobreviver e deixar descendentes?

Não é preciso muita elucubração mental para se chegar à resposta para as duas perguntas acima: a cooperação (ou altruísmo) traz benefícios para o grupo. Posto de modo simples: eu me esforço, gasto energia, mas, no final das contas, todos ganham – inclusive eu. 

Cooperadoras e oportunistas

Por meio de um experimento com bactérias cooperadoras e oportunistas e a aplicação de um modelo matemático (a chamada equação de Price), a pesquisadora brasileira Laura de Vargas Roditi, matemática especialista em biologia computacional, enfrentou o delicado (e ainda polêmico) tema da cooperação com engenhosidade elogiada pelos especialistas que avaliaram seu artigo – esses pareceres estão abertos ao público. A ideia era analisar, em detalhes, as condições que favorecem a cooperação.

Em rápida passagem pelo Rio de Janeiro, sua cidade natal, Roditi contou detalhes do experimento para a CH On-line. Nele, bactérias Pseudomonas aeruginosa foram modificadas geneticamente para produzir biossurfactantes, substâncias que permitem que elas se movimentem com mais facilidade e, assim, busquem alimentos. Nessa situação, a energia vinda do alimento serve tanto para crescer e procriar quanto produzir biossurfactantes. Essas são as cooperadoras.

Pseudomonas aeruginosa
Imagem em micrografia da ‘Pseudomonas aeruginosa’. Estudo mostrou que colônias com maior proporção de bactérias cooperadoras cresceram mais que as dominadas por bactérias oportunistas. (imagem: Wikimedia Commons)

Mas aí entram em cena as P. aeruginosa oportunistas – engenheiradas para não produzir biossurfactantes. Para essas bactérias, a energia do alimento vai totalmente para o quesito ‘crescer e procriar’. No entanto, elas fazem proveito do biossurfactante alheio, para se expandirem espacialmente. Daí, o adjetivo ‘oportunistas’.

O experimento de Roditi e colegas mostrou que as cooperadoras sempre terminavam em proporção menor do que a inicial

Nesse momento, dá-se uma batalha entre os dois tipos de microrganismos. Cerca de 24 horas depois disso, o número de indivíduos dos dois lados cresceu. No entanto, o experimento de Roditi e colegas mostrou que as cooperadoras sempre terminavam em proporção menor do que a inicial. Exemplo: uma colônia que tivesse começado com 10% de cooperadoras e 90% de oportunistas terminaria, depois daquelas 24 horas, com 5% de cooperadoras e 95% de oportunistas.

À primeira vista, esses resultados parecem não dar impulso algum à cooperação. Para que colaborar, se ao final ‘o mal’ vence?

Mas aí – como nos roteiros dos filmes infantis –, ‘o bem’ entra em cena. Roditi e colaboradores observaram que as colônias com maior proporção de cooperadoras cresceram mais que as outras. “A presença de cooperadoras beneficia a população como um todo. Essa presença, somada ao que denominamos alto grau de parentesco – isto é, alta similaridade entre o cooperador e o indivíduo que recebe a ação cooperativa –, favorece a evolução das cooperadoras”, diz Roditi.

Ou seja, colaborar vale a pena. Principalmente, se é possível colaborar de forma mais intensa com outros cooperadores.

Indivíduo versus grupo

Os resultados de Roditi também dão margem – e não mais do que isso – à discussão de um tema que é bem polêmico em biologia: a seleção natural em nível de indivíduo versus a seleção natural em nível de grupo.

Em termos simples, com base nos experimentos de Roditi, isso poderia ser exemplificado assim: mesmo que a proporção de cooperadoras sempre diminua (seleção natural em nível de indivíduo negativa), a colônia com maior proporção de cooperadoras (o grupo) cresce mais que as outras (seleção natural em nível de grupo positiva).

Há especialistas que nem mesmo gostam de escutar um colega sugerindo que a seleção natural ‘age sobre o grupo’. Em geral, o argumento para desmantelar essa afirmação é esse: a seleção natural em nível de indivíduo é tão alta que nem haveria espaço para – e nem faria sentido – ela agir sobre grupos.

Mesmo que a seleção em nível de indivíduo seja negativa, ainda assim é possível a evolução de uma característica cooperativa que traga benefícios para a população como um todo

Há, porém, os que acreditam em um meio-termo, em um equilíbrio entre a seleção natural em nível de indivíduo e de grupo.

Nesse sentido, a contribuição dos resultados dos experimentos de Roditi, em conjunto com a equação de Price – referência ao geneticista norte-americano George Price (1922-1975), cuja vida marcada por tragédias terminou em suicídio –, mostra que, mesmo que a seleção em nível de indivíduo seja negativa, ainda assim é possível a evolução de uma característica cooperativa que traga benefícios para a população como um todo – ou seja, para o grupo.

E Roditi para por aí, sem querer gastar energia com a polêmica ‘indivíduo versus grupo’.

Sadias versus doentes

O artigo – capa da Molecular Systems Biology, periódico do prestigioso grupo Nature – é assinado também pelo pesquisador português (e orientador de Roditi) João Xavier e pela bióloga Kerry Boyle, ambos do Programa de Computação Biológica do Centro Memorial Sloan-Kettering para o Câncer (EUA). Roditi também está vinculada ao Programa de Computação em Biologia e Medicina da Universidade Cornell (EUA), por onde obteve o doutorado.

Células de câncer de pescoço
Células de câncer de pescoço. A pesquisadora irá estudar, agora, a relação entre cooperação e oportunismo em casos de câncer. (imagem: Flickr/ fotosinteresantes – CC BY 2.0)

A brasileira parte agora para um pós-doutorado no Instituto de Biologia Molecular de Sistemas, em Zurique (Suíça). Lá, ela pretende aplicar o mesmo modelo, mas, agora, em células sadias e cancerosas. Nesse caso, a ideia é pensar que as primeiras fabricam determinada substância. As células doentes, por sua vez, se aproveitariam da substância para crescer – mas não a fabricariam. Ou seja, gastariam sua energia apenas para crescer. A ideia de Roditi é pensar que, aqui também, haveria um confronto entre cooperadoras e oportunistas.

Qual seria o resultado final do conflito? Valeriam as mesmas conclusões obtidas em laboratório para as bactérias? Roditi, nos próximos meses, tentará responder a essas e outras perguntas semelhantes.

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ