Vem quente que eu estou fervendo

“Mamíferos e aves têm sangue quente, répteis e peixes têm sangue frio”. Não é bem como os biólogos gostam de descrever, mas a maioria dos leitores deve trazer essas lembranças das aulas de ciências na infância, e talvez se espante com a novidade: lagartos teiús têm a capacidade de aumentar a temperatura do corpo com o próprio metabolismo, pelo menos durante o período reprodutivo. Foi a conclusão a que chegaram pesquisadores brasileiros e canadenses após observar a espécie Salvator merianae, conhecida como teiú-gigante.

A equipe realizava um estudo de acompanhamento dos parâmetros fisiológicos do lagarto – frequência cardíaca, ventilação e temperatura – em um ambiente próximo ao natural. Por ser um animal ectotérmico, isto é, que depende de uma fonte externa de calor para aumentar a temperatura corporal, os teiús costumavam apresentar temperaturas mais altas durante o dia, quando ficavam expostos ao sol, e mais baixas durante a noite, quando descansavam em suas tocas.

Porém, durante a observação, que durou um ano, os cientistas notaram que, no período reprodutivo, a temperatura noturna dos lagartos nunca baixava à temperatura das tocas – cerca de 17 graus Celsius: ficava sempre um pouco acima, em torno dos 24 graus centígrados. O dado surpreendeu os pesquisadores. “Começamos a nos perguntar se eles estavam conseguindo, de alguma forma, reter o calor, ou se estavam mesmo aumentando ativamente sua temperatura interna”, contou à CH Online o biólogo Cleo Leite, da Universidade Federal de São Carlos, que participou da pesquisa.

Imagem termal de um teiú-gigante
Imagem termal de um teiú-gigante dentro de sua toca às seis da manhã. (foto: Glenn J. Tattersall)

As questões motivaram novos experimentos, voltados especificamente para o controle de temperatura durante o período reprodutivo dos teiús. Nesta etapa, 11 lagartos tiveram sua temperatura corporal interna monitorada continuamente por implantes e a externa, com a ajuda imagens térmicas registradas por uma câmera com sensor de radiação na faixa do infravermelho. Assim, foi monitorado o calor produzido e perdido pelo corpo. Os animais foram acompanhados por algumas semanas em ambiente seminatural e dentro de uma grande câmara térmica mantida fria (18oC). Ficou demonstrado que os animais conseguem manter sua temperatura corporal às custas da produção interna de calor. Os resultados foram publicados na revista Science Advances (22/1).

A principal conclusão do estudo foi que, após um período de dormência – cerca de quatro meses em que mantêm sua temperatura corporal baixa como a de suas tocas –, os teiús progressivamente aumentam seu metabolismo para se engajar em funções como a produção de gametas, a procura de parceiros, a postura de ovos e preparação dos ninhos. Nesse período, a temperatura corporal mantém-se sempre um pouco acima da temperatura ambiente. O efeito é ligeiramente mais intenso nas fêmeas, que dispendem mais energia nas atividades reprodutivas que os machos. “Esse processo nunca foi flagrado em nenhuma outra espécie ectotérmica”, enfatiza Leite.

Para a bióloga Renata Brandt, da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, o trabalho muda a maneira como vemos a termorregulação em répteis e outros animais. “Os autores refutam a ideia tradicional de que animais pequenos e que não possuem revestimentos de isolamento térmico, como penas e pelos, não poderiam aumentar a temperatura do corpo de forma significativa usando apenas o metabolismo”, ressalta.

Termogênese e evolução

Além de aumentar o conhecimento existente sobre a fisiologia dos teiús, o estudo recém-publicado tem implicações para nossa compreensão sobre a evolução das espécies. “O início da termogênese [geração interna de calor] para a termorregulação [controle da temperatura corporal] é até hoje um mistério nos estudos evolutivos”, pontua o pesquisador. Ele explica que ainda não temos uma teoria satisfatória para explicar como essa capacidade surgiu nos mamíferos e nas aves.

Os dois grupos são filogeneticamente muito distantes, isto é, vêm evoluindo separadamente há muitos milhões de anos. Sabemos, portanto, que a termorregulação surgiu nos mamíferos e nas aves de maneira independente, o que quer dizer que o ancestral comum dos dois grupos ainda não apresentava essa capacidade. Mas os cientistas já formularam algumas hipóteses para explicar como isso aconteceu.

“Uma dessas hipóteses é a do aumento metabólico voltado ao período reprodutivo ou cuidado parental”, conta Leite. “Os dados obtidos na pesquisa com os teiús sugerem que esta é uma teoria possível”. Comprová-la, porém, não vai ser nada fácil, já que os pioneiros da termorregulação entre aves e mamíferos estão extintos há muito tempo.

A partir de agora, Leite e seus colegas devem se aprofundar no estudo com os lagartos para, quem sabe, contribuir nesse quebra-cabeças evolutivo. Qual o papel adaptativo do aumento da temperatura corporal no período reprodutivo? Será que ele aumenta a produção de gametas? De que mecanismos os teiús se valem para aumentar o metabolismo? Por que só fazem isso no período reprodutivo? São questões que pretendem responder.

Catarina Chagas
Instituto Ciência Hoje/ RJ