Voluntários saem de seu corpo em laboratório

 

A ciência deu um passo importante para explicar um intrigante fenômeno da mente humana: o caso de indivíduos que afirmam ter tido a sensação de “sair de seu próprio corpo” e enxergá-lo de fora. Com a ajuda da tecnologia de realidade virtual, cientistas conseguiram reproduzir esse fenômeno em laboratório. Os resultados ajudam a entender como construímos a consciência de nosso corpo e podem ter aplicações futuras na medicina, na indústria do entretenimento e em outras áreas.

Relatos de indivíduos que afirmam ter “saído de seu corpo” não são novos na ciência. Esse tipo de experiência parece estar associado a um funcionamento anormal do cérebro: o fenômeno pode ocorrer em decorrência de acidentes vasculares cerebrais, de crises de epilepsia ou do consumo excessivo de drogas. No entanto, a neurociência não tinha até aqui uma explicação convincente para o fenômeno. Isso pode mudar com a publicação de dois artigos na edição desta semana da revista Science .

O neurocientista Henrik Ehrsson induz em um voluntário a experiência de “sair de seu corpo”. Com óculos 3D, o participante enxerga uma imagem de suas costas, filmadas por duas câmeras situadas atrás de si. O pesquisador estimula o peito real e o peito virtual do voluntário, que ele sente como se fosse o seu, como se estivesse enxergando seu corpo de fora (foto: Henrik Ehrsson).

Em um deles, o neurocientista sueco Henrik Ehrsson, em trabalho feito no University College London, na Inglaterra, apresenta um método para induzir experimentalmente esse fenômeno em indivíduos saudáveis. Um participante fica sentado em uma cadeira, munido de óculos de visão tridimensional usados comumente em aparelhos de realidade virtual. Cada uma das lentes reproduz as imagens transmitidas por duas câmeras situadas atrás desse indivíduo, filmando suas costas.

O intuito do aparato era investigar se os voluntários poderiam perceber o corpo que estavam enxergando como o seu próprio. Para isso, o neurocientista estimulou, com um bastão de plástico, o peito do participante, ao mesmo tempo em que simulava tocar, fora do campo de visão das câmeras, a região em que deveria estar o peito do corpo virtual que os voluntários estavam enxergando (veja na foto ao lado).

O resultado confirmou a hipótese do pesquisador: em questionários respondidos após dois minutos de estímulo, os participantes relataram que haviam percebido o corpo que estavam vendo pelos óculos como o seu próprio, como se tivessem se enxergando de fora. A sensação não foi percebida quando o toque no peito real e no peito ilusório dos participantes não era feito de forma simultânea. 

Ameaça com martelo
Para reforçar sua conclusão, Ehrsson fez um segundo experimento: após o estímulo com o bastão, ele ameaçou ferir com um martelo o corpo virtual dos voluntários e mediu o nível de transpiração da sua pele, como um indicador da resposta emocional à ameaça. Os resultados mostram que a resposta foi mais intensa nos casos em que o estímulo ao peito real e ao peito ilusório havia sido feito de forma simultânea, ou seja, os voluntários reagiram como se fossem ter seu próprio corpo atingido pelo martelo.

Em outro artigo na mesma edição da Science , a equipe de Olaf Blanke, da Escola Politécnica Federal, em Lausanne (Suíça), apresentou um método similar, também baseado nas tecnologias de realidade virtual, para induzir em indivíduos saudáveis a sensação de “sair do corpo”. No experimento, após estimular simultaneamente o corpo real e o corpo virtual dos participantes, os pesquisadores deslocavam-nos e pediam que retornassem à posição original. Os voluntários caminhavam na direção do local em que haviam visto seus corpos virtuais.

As conclusões dos dois estudos são parecidas: os cientistas acreditam que um conflito entre os circuitos cerebrais envolvidos no processamento das informações sensoriais da visão e do tato pode estar por trás do fenômeno. “Disfunções cerebrais que interferem na interpretação dos sinais sensoriais podem ser responsáveis por alguns casos clínicos desse fenômeno”, afirma Erhsson. “No entanto, ainda não se sabe se todos os casos de indivíduos que afirmam ‘sair de seu corpo’ se explicam por esse motivo.”

Os resultados são importantes para entender como os estímulos sensoriais afetam a construção da consciência que os indivíduos têm de si mesmos e de seu corpo. Além disso, eles abrem as portas para aplicações tecnológicas interessantes. “Imagine as implicações caso consigamos projetar as pessoas em um personagem virtual”, especula Ehrsson. “Um cirurgião poderia conduzir uma operação à distância, controlando seu eu virtual a partir de uma localidade remota. E a experiência dos jogos eletrônicos poderia atingir um patamar totalmente novo.”

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
23/08/2007