A área de transplantes tem passado por importantes avanços nos últimos anos. Hoje, além dos órgãos tradicionais, já é possível transplantar mãos, pernas e até rostos de uma pessoa para outra. Mas ela ainda está longe de atender as necessidades globais. Muitos pacientes, no Brasil e no mundo, falecem em lista de transplante esperando por órgãos.
Para o médico Flávio Henrique Ferreira Galvão, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), uma interessante solução para o problema da falta de doadores está no xenotransplante, a transferência de células, tecidos e órgãos entre diferentes espécies animais.
O método não é novo. Segundo Galvão, até o final da década de 1970, dezenas de transplantes de rim, fígado e coração foram realizados usando macacos, porcos, cabras e coelhos. Essas experiências pioneiras verificaram alto índice de insucesso desses procedimentos, devido principalmente à forte rejeição (chamada hiperaguda), que destrói o órgão em poucas horas. Esse fato, aliado ao sucesso do uso de doadores humanos falecidos e vivos, provocou o abandono do xenotransplante clínico.
Avanços recentes nos estudos na área, porém, tem permitido que se vislumbre o retorno desse método como potencial solução para a carência de órgãos. Em seminário realizado em janeiro, na USP, Galvão falou sobre alguns dos principais avanços relacionados ao xenotransplante e dos desafios que será preciso enfrentar para transformá-lo em uma possível realidade clínica e, assim, fazer a fila do transplante andar mais rápido.
Novos procedimentos
Já é comum se utilizar tecidos suínos em próteses cardíacas e na composição de fígados bioartificiais. Mas o uso de células e órgãos de porcos e de outros animais ainda tem grande limitação. No intuito de melhorar esse quadro, pesquisadores vêm lançando mão de técnicas sofisticadas de terapia genética. Há grupos testando a produção de porcos com órgãos mais compatíveis com o organismo humano, o que diminuiria a chance de rejeição em casos de xenotransplante. Nesses experimentos, Galvão explica que partes genéticas desses animais que provocam a rejeição hiperaguda são substituídas por genes humanos.
Com o avanço da genética e a possibilidade de se reprogramar células maduras em células-tronco embrionárias – pesquisa que rendeu o Nobel de Medicina de 2012 para John Gurdon e Shinya Yamanaka –, o leque de possibilidades aumenta. Nessa linha, pesquisadores estão testando o xenotransplante de diferentes tipos celulares, entre eles as células mesenquimais (importantes na cicatrização), células-tronco de ilhotas pancreáticas, do sangue e do fígado de porco.
Os resultados experimentais desses transplantes foram promissores e instituições dos Estados Unidos devem realizar as primeiras tentativas clínicas de transplantação de ilhotas pancreáticas (células que produzem a insulina no pâncreas) ainda este ano. Nesse procedimento, ilhotas são retiradas do pâncreas de porcos modificados geneticamente e injetadas em órgãos do receptor, como o fígado. A expectativa é que elas tratem o diabetes, dispensando, assim, o transplante do órgão inteiro. “O transplante celular simplifica muito o transplante de órgãos porque diminui os custos e evita complexos procedimentos cirúrgicos”, explica Galvão.
Além de manipulações genéticas e transplantes celulares, o médico cita outros estudos pioneiros que vêm sendo realizados na FMUSP, como o xenotransplante multivisceral. Nesse tipo de transplante, estômago, intestino, fígado e pâncreas são transplantados em bloco. “Na pesquisa da FMUSP, realizada entre coelhos e porcos, vêm sendo estudados aspectos ainda desconhecidos da atuação de células e mediadores moleculares imunológicos (anticorpos, citocinas e quemocinas) na rejeição hiperaguda dos diversos órgãos transplantados”, conta.
Velhos obstáculos
Apesar dos avanços, há ainda muitas lacunas nos estudos brasileiros de xenotransplante. Primeiramente, há a questão da rejeição do organismo receptor do órgão. Se ela já é um problema para o transplante entre pessoas, ele se agrava no caso de doadores animais. Os imunossupressores que pacientes transplantados precisam tomar para evitar a rejeição diminuem a atividade do seu sistema imunológico, deixando-o mais vulnerável a outras doenças, como infecções e cânceres, além de não garantir 100% a aceitação do novo tecido ou órgão. Além disso, há o risco de outras complicações em função da agressividade da cirurgia.
Na avaliação de Galvão, um dos maiores entraves para o avanço do conhecimento nessa área é a carência no país de animais específicos para experimentos em transplantes e terapias celulares. “Infelizmente a ciência de animais de laboratório ainda é muito incipiente em nosso país”, lamenta o médico. Segundo ele, existe no Brasil apenas o biotério da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que produz animais de qualidade genética específica. “Ainda assim, a produção desse biotério atende basicamente as necessidades da Unicamp”, completa.
Outros obstáculos estão relacionados a questões de saúde pública, econômicas e éticas. Existe a possibilidade de haver transmissão de infecção proveniente desses animais, o que poderia levar a complexas epidemias. Além disso, as pesquisas de produção de animais apropriados para esse fim são muito caras. E há também uma grande rejeição ao xenotransplante por muitos setores da sociedade, principalmente de proteção aos animais.
O problema, segundo Galvão, é que as questões éticas para reger esse tema ainda não foram bem estabelecidas. “Só muito recentemente, em 2008, a Organização Mundial de Saúde definiu a regulação dos requerimentos de segurança, principalmente epidemiológica, para as possíveis aplicações clínicas do xenotransplante em humanos”, afirma.
No entanto, não há nada na legislação brasileira que dê conta da questão. “Eu acho que é uma coisa que precisa ser pensada”, defende o médico. “Em recente visita a centros como os das universidades norte-americanas de Indianápolis e Pittsburgh, que têm incrível avanço biotecnológico nessa área, me foi relatada a intenção do uso de órgãos e células de outros animais em futuro próximo”, completa.
Roberta Adena
Ciência Hoje On-line