A carga de doença no Brasil

O que é ter saúde? A abordagem mais comum e intuitiva relaciona a existência da saúde à ausência de mal-estar expresso por sintomas percebidos. Nessa perspectiva, em 1936, o médico francês René Leriche pontificou que: “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Entretanto, há situações nas quais a saúde deixa de existir sem que o organismo ‘fale’. São muito comuns as doenças quase totalmente assintomáticas na maior parte do seu desenvolvimento, como o diabetes.

Diante disso, em 1946, na declaração de fundação da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi lançada a mais conhecida e ampla definição de saúde: “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” Essa generosa definição, muito embora rica do ponto de vista cultural e político, padece de uma dificuldade insanável no plano de suas aplicações práticas. Em outros termos, não é possível medir adequadamente, em cada indivíduo, aquele “estado de completo bem-estar”.

Para contornar esse problema, os epidemiologistas – profissionais que estudam a distribuição da saúde e das doenças na população – passaram a definir a saúde pela falta dela, isto é, pelas doenças. Para tanto, construíram inúmeras ferramentas para medir a frequência das doenças na população e, a partir daí, a explicação para a existência de distribuições diversas em populações e/ou períodos diferentes.

Um passo importante na medição do estado de saúde a partir do cálculo da frequência das doenças e suas consequências foi a criação de um indicador sintético da ‘carga global de doença’ em uma coletividade

Um passo importante na medição do estado de saúde a partir do cálculo da frequência das doenças e suas consequências foi dado em 1996 pelos pesquisadores Christopher Murray, da Universidade Harvard (EUA), e Alan López, da OMS. A partir de métricas bastante arrojadas, eles criaram um indicador sintético capaz de medir a ‘carga global de doença’ em uma coletividade.

A esse indicador, deram o nome de ‘Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade’ (DALY, na sigla em inglês). Ele é derivado da soma do valor de outros dois indicadores: o YLL (sigla em inglês para ‘Anos de Vida Perdidos por Morte Prematura’) e o YDL (sigla em inglês para ‘Anos Perdidos Devido à Incapacidade). A metodologia de Murray e López, que não é isenta de críticas, é largamente usada em todo o mundo.

Panorama brasileiro

No Brasil, um estudo com estimativas da carga de doença, tendo como referência o ano de 1998, foi publicado em 2002. Em 2013, foi publicada uma nova estimativa (ainda não disponível na internet), com dados de 2008. O grupo responsável pelos dois estudos está sediado na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e é liderado pelos pesquisadores Iúri da Costa Leite, Joaquim Gonçalves Valente e Joyce Mendes de Andrade Schramm.

Os principais resultados da última estimativa foram os seguintes. As mortes prematuras por todas as causas significaram, em 2008, a perda de 18,3 milhões de dias para toda a população. Já os dias perdidos por incapacidade somaram 18,7 milhões. A soma dos dois representou a perda de 36,9 milhões de dias perdidos, 195 dias por cada mil brasileiros.

A carga de doença é maior entre os homens. Foram 208 dias perdidos por mil habitantes masculinos e 183 para cada mil mulheres. Quando se decompõe o indicador em mortes e incapacidade, revela-se que os dias perdidos por mortes por mil habitantes entre os homens (122) também supera o das mulheres (72). Mas, ao contrário, os dias perdidos por incapacidade é maior entre as mulheres (110) do que entre os homens (86). Essa disparidade é, muito provavelmente, decorrente das mortes violentas, cujo risco de ocorrer entre homens é muito maior do que entre as mulheres.

Homem doente
A carga de doença na população brasileira é maior entre os homens: para cada mil indivíduos, foram 208 dias perdidos em 2008, contra 183 para cada mil mulheres. (foto: Ryan Hyde/ Flickr – CC BY-SA 2.0)

Há uma forte desigualdade regional. Nesse quesito, foram obtidas taxas de 218, 206, 186, 185 e 180 dias perdidos por mil habitantes para as regiões Nordeste, Norte, Centro-oeste, Sudeste e Sul, respectivamente. Grosso modo, esses números seguem os diferenciais socioeconômicos das regiões.

Principais causas

O estudo estimou a carga de doença associada a 107 causas de morte e incapacidade específicas, divididas em 21 grupos, que, por sua vez, foram separados em três grandes grupos: doenças infecciosas e parasitárias, condições maternas, perinatais e deficiências nutricionais (I); doenças não transmissíveis (II); e causas externas (acidentes e violências) (III). No Brasil, 13,2% dos dias perdidos por morte e incapacidade foram associados ao grupo I, 77,2% ao grupo II e 9,5% ao grupo III.

As três causas mais importantes de carga de doença foram, entre os homens, doença cardíaca isquêmica (7,2%), homicídio e violência (6,7%) e abuso e dependência de álcool (5,0%). Entre as mulheres, depressão (13,4%), doença cardíaca isquêmica (6,4%,) e diabetes mellitus (5,0%).

Quase três quartos das causas de morte e incapacidade decorrem de doenças não transmissíveis, como as doenças do coração, o câncer e as doenças psiquiátricas

Além dessas, há outras diferenças marcantes entre os sexos. Por exemplo, homicídio e violência, segunda causa para os homens, não apareceu entre as 20 primeiras causas para as mulheres. Abuso e dependência de álcool e acidente de trânsito, na terceira e quinta posições no sexo masculino, deslocaram-se para a 13ª e 15ª posições no feminino, respectivamente. Depressão e diabetes mellitus, classificadas em primeira e terceira posições para as mulheres, ficaram na sétima e sexta posições para os homens, respectivamente. Foi encontrada ainda grande variação para Alzheimer e outras demências, em 15º lugar entre homens e sexto entre mulheres.

Além da complexidade e da variação das causas de morte e incapacidade no Brasil, esse estudo destaca quatro aspectos que, por vezes, são apresentados na imprensa de modo pouco preciso. O primeiro deles é o peso relativamente pequeno das chamadas doenças da pobreza atualmente. Quase três quartos das causas de morte e incapacidade decorrem de doenças não transmissíveis, como as doenças do coração, o câncer e as doenças psiquiátricas.

O segundo aspecto relevante diz respeito à desigualdade regional, que, apesar da mudança do perfil das doenças no país, segue a nossa tradicional geografia da pobreza. O terceiro aspecto são as grandes diferenças entre os sexos, o que sugere cada vez mais a necessidade de uma política de saúde ‘especializada’ para homens e mulheres. E a quarta evidência é a brutal importância das mortes violentas entre homens, em particular entre os jovens de 15 a 49 anos.

Reinaldo Guimarães*

(*) Médico sanitarista, com atuação em planejamento, gestão e políticas de ciência e tecnologia e de saúde. Foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos e diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia, ambos do Ministério da Saúde, e vice-presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é diretor de Propriedade Intelectual da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina).