A maioridade no mar

O Brasil acaba de acertar sua participação como membro pleno no Programa Integrado de Perfuração Oceânica (IODP, na sigla em inglês), que reúne pesquisadores altamente qualificados de 24 países para estudar a natureza e a dinâmica da Terra a partir de amostras de sedimentos e rochas coletados milhares de metros abaixo do fundo do oceano. As pesquisas nessa área permitem obter informações sobre a história e a magnitude de eventos naturais e sobre a vida em nosso planeta.

Fruto do esforço conjunto da comunidade científica nacional e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a entrada do Brasil no programa – em condição de igualdade com países como Estados Unidos, Japão, Índia, China, Reino Unido, França e Alemanha – permitirá a inclusão de brasileiros nos comitês de decisão técnica e científica do IODP. Dessa forma, será possível promover o desenvolvimento de pesquisas orientadas por interesses científicos nacionais, em particular no oceano Atlântico Sul.

Nesta entrevista, o biofísico Luiz Drude de Lacerda, pesquisador do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará e membro do comitê executivo criado pela Capes para divulgar a adesão brasileira ao IODP, fala sobre o programa e a importância de o país se tornar membro dessa rede internacional de pesquisa.

Visita ao navio Joides Resolution
O comitê executivo criado pela Capes para divulgar a adesão brasileira ao IODP visita o navio Joides Resolution em janeiro de 2012 em Lisboa (Portugal). Da esquerda para a direita: Adalto Bianchini (Furg); o pesquisador norte-americano que recebeu o grupo; Sidney Luiz de Matos Mello (UFF); Luiz Drude de Lacerda (UFC); e Emídio Cantídio (Capes).

O que é o Programa Integrado de Perfuração Oceânica e qual a sua importância?
O IODP é o maior programa internacional de pesquisa no mar, apoiado por 24 países. A iniciativa surgiu em 1961 e tem foco em estudos sobre a natureza e a dinâmica da Terra, incluindo processos tectônicos, circulação oceânica, mudanças climáticas, formação de bacias oceânicas e biologia de organismos extremos.

Quase tudo que se conhece sobre a história dos oceanos e da própria Terra teve origem nas pesquisas do IODP

O programa usa as mais modernas tecnologias em perfuração oceânica como instrumento essencial para novas descobertas. A perfuração é apoiada por laboratórios analíticos a bordo dos principais navios do programa – o Joides Resolution e o Chikyu –, que contam com equipamentos de última geração voltados a investigações geofísica, geoquímica, microbiológica e paleoclimática. Essa estrutura tem ainda o suporte de mais de uma centena de universidades e institutos de pesquisa localizados nos países membros do programa e de três grandes ‘sedimentotecas’, onde exemplares de todas as amostras ficam à disposição dos pesquisadores participantes para confirmação de dados ou novas interpretações.

Com esse aparato, a comunidade cientifica internacional atuante em ciências do mar, sobretudo em águas profundas, vem, desde os anos 1960, promovendo uma verdadeira revolução sobre o conhecimento das bacias oceânicas e dos continentes. Para se ter uma ideia, quase tudo que se conhece sobre a história dos oceanos e da própria Terra teve origem nas pesquisas do IODP, que atualmente somam mais de 340 perfurações.

Como as perfurações oceânicas podem contribuir para o avanço do conhecimento sobre a Terra?
O substrato do fundo oceânico contém um registro único da história da Terra e de sua estrutura, o que ajuda a compreender melhor os processos e fenômenos do planeta e a responder perguntas sobre aspectos fundamentais de seus ciclos geodinâmicos, do meio ambiente e da biosfera. Portanto, a perfuração do fundo dos oceanos ilumina o passado, torna possível entender o funcionamento presente e permite criar cenários para o futuro da Terra.

Entre as realizações científicas que derivaram de perfurações oceânicas, destacam-se: a descoberta da influência da calota de gelo polar nas flutuações do nível do mar, o desenvolvimento de uma escala de tempo geológico para os últimos 150 milhões de anos, a reconstrução da história do clima global e da evolução da biodiversidade nos últimos 65 milhões de anos com base em sedimentos oceânicos e o reconhecimento geológico da resposta da Terra ao aumento do dióxido de carbono na atmosfera.

Mais recentemente, microbiologistas participantes das expedições do IODP iniciaram a documentação das formas de vida profundamente enterradas nos sedimentos. Hoje se sabe que microrganismos apresentam atividade biológica até 1.626 metros abaixo do fundo oceânico!

Plataforma de perfuração
Plataforma de perfuração do navio Joides Resolution. (foto: IODP)

A introdução de técnicas de biologia molecular e de cuidados com o pré-tratamento das amostras retiradas das profundezas permitiu um grande avanço na compreensão da vida em condições ambientais extremas. Resultados recentes do IODP sugerem que a biodiversidade nesses ambientes é imensa.

A existência desses microrganismos expande a zona verdadeiramente habitável do planeta. Para sobreviver em um ambiente inóspito, eles desenvolveram defesas metabólicas e estratégias de vida que os protegem das condições ambientais extremas e levam à adoção de vias biossintéticas únicas e ainda muito pouco conhecidas baseadas em novas moléculas. Por isso, a biosfera do mundo suboceânico é de grande interesse não só da ciência básica; suas múltiplas aplicações têm enorme potencial biotecnológico e farmacêutico.

Além disso, os ambientes sob o fundo oceânico apresentam condições semelhantes àquelas que os cientistas supõem terem existido nos primórdios do planeta. Portanto, entender os processos metabólicos e as estratégias de vida dessa biosfera tão particular pode prover novas abordagens para o entendimento da origem e da evolução da própria vida na Terra.

Quais os principais objetivos de pesquisa do IODP atualmente?
Nos próximos 10 anos, as pesquisas do IODP abordarão aspectos do clima da Terra, da vida em grandes profundidades, da geodinâmica e de eventos geológicos (como terremotos, vulcões e tsunamis), o que poderá fornecer uma resposta global às mais prementes questões ambientais da atualidade.

Os sedimentos marinhos preservam a história da biodiversidade no oceano

Os sedimentos e as rochas do substrato marinho registram parâmetros ambientais de dezenas de milhões de anos atrás, de uma época em que ainda não havia influência humana na Terra e quando os níveis de dióxido de carbono atmosférico e as temperaturas globais eram muito maiores do que os de hoje. Esses registros permitirão entender melhor a resposta do planeta a essas situações, o que ajudará a prever mudanças no nível do mar no futuro e avaliar como as alterações nos oceanos e nas temperaturas atmosféricas podem influenciar os padrões regionais de precipitação e a distribuição e a frequência de furacões, por exemplo.

Além disso, os sedimentos marinhos preservam a história da biodiversidade no oceano, desde a origem até a extinção de espécies, e podem fornecer registros de mudanças climáticas nos ecossistemas terrestres que tenham afetado a evolução, inclusive dos hominídeos na África. As amostras e os dados do IODP servirão para compreender a físico-química e os limites da vida no substrato marinho, incluindo os mecanismos que os micróbios usam para gerar energia, fixar e dispersar carbono e encontrar novos recursos.

Os recentes avanços em ferramentas de medição em poços de perfuração permitirão intensificar observatórios de longo prazo para o contínuo monitoramento do substrato marinho e a quantificação de respostas do sistema a perturbações naturais e induzidas. Também será possível identificar a propriedade das rochas e monitorar as condições associadas a grandes terremotos e tsunamis.

Quais as vantagens da entrada do Brasil no IODP?
Embora alguns países já sejam tradicionalmente parceiros brasileiros em cooperação científica sobre os oceanos, a adesão ao IODP gera enorme potencial de novas colaborações, principalmente na formação de pessoal.

Outro ponto é que o acesso da comunidade brasileira a navios equipados ainda é muito restrito, o que vem limitando nossas pesquisas oceânicas. Esse é um verdadeiro paradoxo diante da extensão da plataforma continental do Brasil e do oceano Atlântico adjacente a ela. Agora finalmente essa situação começa a ser revertida.

Esperamos que, em uma década, tenhamos formado uma nova comunidade científica de mar profundo capaz de responder às demandas do país

O ingresso do Brasil no IODP, que exige um investimento anual de 3 milhões de dólares, tem um custo pequeno frente ao impacto esperado na comunidade científica nacional, que terá acesso a um conhecimento global do fundo dos oceanos. Além disso, pesquisadores e estudantes brasileiros poderão se candidatar a participar de expedições e propor sítios para perfurações com base em interesses científicos nacionais. Por exemplo, obter e datar os sedimentos do período Cretáceo [de 145 milhões e 500 mil a 65 milhões e 500 mil anos atrás] no platô de Pernambuco, a última seção do continente sul-americano a se separar da África, permitirá saber quando o oceano Atlântico Sul foi finalmente formado.

No âmbito da formação de recursos humanos, o IODP é respaldado por vários dos melhores centros de pesquisa sobre oceano profundo e universidades. Essa diversa gama de centros de formação estará automaticamente disponível para receber estudantes de graduação, pós-graduação e pesquisadores por meio de intercâmbio. Além disso, os navios envolvidos são verdadeiras universidades flutuantes e abrigam o melhor e mais moderno arsenal científico para analisar os sedimentos e rochas coletados abaixo dos fundos oceânicos. Esperamos que, em uma década, tenhamos formado uma nova comunidade científica de mar profundo capaz de responder às demandas do país e multiplicar a formação de recursos humanos em nível internacional.

Ao participar do IODP, o Brasil alcança a maioridade no mar. O país terá a oportunidade de fomentar uma comunidade científica altamente qualificada na área de oceanografia, com ênfase em águas profundas, o que permitirá um salto quantitativo e qualitativo tão necessário ao entendimento, uso e conservação do mar brasileiro e águas adjacentes.

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line