A odisséia do vidro

Telescópios e microscópios, lentes de óculos, monitores e aparelhos de TV, janelas. Sem o vidro, nem esses nem outros instrumentos fundamentais à civilização existiriam e o progresso das técnicas teria ocorrido de forma mais lenta. Haveria menos conforto, muitas áreas do conhecimento seriam ainda inexploradas e a revolução científica talvez não tivesse acontecido.

Microscópio desenvolvido pelo britânico Robert Hooke  no século 17. Sem o vidro, esse e outros instrumentos que permitiram a revolução científica não existiriam

Esse é o ponto de vista do antropólogo Alan Macfarlane, da Universidade de Cambridge. Em artigo publicado na revista Science de 3 de setembro e assinado também por seu parceiro Gerry Martin, já falecido, o pesquisador conta a história do vidro e mostra como a evolução da humanidade e das ciências teria sido diferente sem esse material.

Pouco se sabe sobre a origem do vidro. Sua descoberta acidental pode ter ocorrido entre 3000 e 2000 a.C., em regiões como o Egito ou a Mesopotâmia. Os autores contam que os fenícios foram, provavelmente, o primeiro povo a observar a formação de um líquido transparente quando os blocos de nitrato que utilizavam para cozinhar derretiam e se misturavam à areia. Em 1500 a.C., artesãos egípcios já produziam vasos com o material e o primeiro manual de fabricação de vidro apareceu na Assíria por volta de 650 a.C.

Os pesquisadores relatam que a novidade foi levada para a Europa ocidental pelos romanos, que aprenderam com os sírios a técnica artística do sopro de vidro. Com a expansão do Império Romano, a descoberta foi popularizada e, no século 13, Veneza tornou-se o maior centro produtor do material no mundo ocidental. Garrafas, janelas e instrumentos científicos de suma importância passaram então a ser produzidos em larga escala.

A partir daí, a vida tornou-se mais prática e confortável na Europa e o progresso científico cada vez mais acelerado. “Recipientes de vidro simplificaram o transporte e a estocagem de comidas, bebidas e medicamentos; estufas ajudaram a desenvolver a agricultura e faróis e lanternas facilitaram a vida noturna”, exemplificam os autores.

O artigo destaca a importância do vidro para a investigação científica: sem instrumentos como barômetros e termômetros, gases não teriam sido estudados e máquinas a vapor, eletricidade e lâmpadas não existiriam. Sem microscópios, seria impossível observar microrganismos e não haveria revolução médica; não conheceríamos as células e seu funcionamento e a genética seria ainda um mistério.

A arte foi igualmente influenciada pelos novos caminhos abertos pelo vidro. O estudo da ótica e o surgimento de espelhos, lentes e vitrais foram imprescindíveis para as mudanças ocorridas durante o Renascimento.

Os autores concluem que o vidro está por trás de quase todas as transformações que a Europa ocidental conheceu entre 1200 e 1850 — intervalo de tempo por eles estudado. Esse material foi fundamental para o advento das revoluções científica e industrial, que mudaram o mundo. “O vidro abriu a mente e os olhos das pessoas para novas possibilidades de observação, ao transformar a percepção humana da forma auditiva para a visual”, afirmam.

Isabel Levy
Ciência Hoje On-line
15/09/04