A caveira dançante

Impressões mexicanas, parte 3

Quinta-feira, 27 de novembro. Minha primeira lembrança é estar na frente do Hotel Tulip Inn Ritz, que me pareceu ter tido seus dias de glória na década de 1950. Fica na rua Francisco I. Madero, que, ao ser observada, tanto rumo ao Zócalo (umas três  quadras) quanto na direção do Museu de Belas Artes (uns dois ou três quarteirões), revela algo que me pareceu curioso sobre a Cidade de México: ela é cinza. Nada a ver com poluição (que, me dizem, está bem menor, mas piora no inverno). A monotonalidade das ruas mexicanas se deve ao tipo de tijolo ou pedra usado nas construções (dois dias depois, observo a mesma uniformidade incolor nas favelas mexicanas).

O cinza urbano contrasta com as cores da bandeira mexicana

O cinza urbano contrasta com as cores da bandeira mexicana (que me lembram as da camisa de meu famigerado time no Brasil, a Lusa): verde, vermelha e branca. Os folhetos turísticos também nos vendem um país colorido. Até as roupas dos habitantes da capital também estão longe de ser uma aquarela. Lembram-me o cinza e o negro da dita (ou da ausência de) moda londrina. Para mim, duas cores se destacam em meio à paisagem: o verde luminoso das faixas que a polícia de trânsito usa sobre o uniforme; o vermelho forte do batom das policiais femininas, quase como se fossem parte obrigatória da vestimenta militar, com calças sempre justas e cabelos presos.

Ainda na Francisco I. Madero (ex-presidente mexicano, latifundiário, assassinado em 1913), há o Palácio de Iturbide. Ensina o mapa turístico: exemplo clássico do barroco mexicano, construído entre 1779 e 1885. Ali viveu, de 1821 a 1823, Augustín de Iturbide, sobre o qual nunca havia ouvido falar. Rápida olhada no Google me leva ao verbete da Wikipédia. Aprendo que foi militar e político mexicano muito importante para a independência do país e da América Central. Foi imperador do México, com o nome de Augustín I. O México teve imperador? A resposta remete a algo que sempre pensei ser (grande) falha de nosso ensino de história: o total desconhecimento (pelo menos, na minha época de primário, ginásio e colegial, nas décadas de 1960 e 1970) da história latino-americana. Acho que aprendíamos mais sobre a África, em função do colonialismo, e os Estados Unidos, donos do mundo, do que sobre nossos vizinhos americanos (alguém aí sabe algo sobre a história do Equador, por exemplo?).

11h15. Arturo, meu colega jornalista mexicano, desculpa-se pelo atraso. Seguimos por Francisco Madero, direção Palácio de Belas Artes, rumo a uma grande avenida. Pegamos um ônibus. Moderno, acho que com ar-condionado, altos, tudo novinho. Nunca vi no Brasil nada parecido (só andei em um assim em Genebra, Suíça).

Também nunca vi por aqui micro-ônibus tão micros. São, além de velhos, extremamente baixos. Ao entrar em um deles, eu (cerca de 1,90 m) bato com as costas (sem exagero) no teto. Impossível ficar de pé. Por sorte, está vazio, e pude me sentar. Brasil, México… o melhor do Primeiro Mundo; o pior do Quarto Mundo. Esse constraste me acompanhará ao longo de minha viagem.

Percorremos avenidas largas, bem cuidadas, zonas bancárias e de edifícios de negócios. Chegamos a Chapultepec. Na verdade, Bosque de Chapultepec. À nossa frente, uma imponente escultura de pedra (acho que de uma deusa, talvez, asteca) nos recepciona. Do outro lado da avenida, está a parte maior do bosque, com o zoológico e vários museus (saí do Brasil com a sugestão de visitar o Museu de História, missão que nunca cumpri; o mais perto que cheguei da outra parte do bosque foi pisar na calçada daquele lado para pegar um táxi).

Maquete templo mayor
Maquete do Templo Mayor mostra a grandeza do projeto arquitetônico.

 

A arquitetura dos grandes museus mexicanos (incluindo o Templo Mayor) me agrada. São grandes caixas (sentido não pejorativo), com grandes espaços vazios.

[Primeira digressão: A arquitetura do Museu de Antropologia e do Templo Mayor, próximo ao Centro Histórico, lembra-me, por vezes, a de nosso Niemeyer, que, em uma entrevista, insistiu para que eu ficasse com uma caixa de cigarrilhas (caríssimas), apesar de minha insistência ao contrário (sou da opinião, quase ingênua, de que jornalistas não devem aceitar nem mesmo aqueles bloquinhos e canetas promocionais…). Mudo de opinião quando meu colega jornalista me indica que minha recusa já estava assintoticamente beirando a falta de educação. Digo, então, a Niemeyer que aceito, com uma condição: uma dedicatória dele na caixa. O objeto permanece enrolado em plástico filmito em meu armário, como lembrança de um homem bom, bacana e generoso (esta última qualidade me foi confirmada por um tipo de secretária pessoal). No meio da entrevista, ele nos pergunta se vamos almoçar lá. Dissemos, obviamente, que não. E ele enfatiza que não haveria problema; era só para avisar a cozinheira para colocar mais pratos na mesa. A memória me trai neste momento, mas acho que no meio da entrevista chegaram alguns líderes do MST, incluindo o líder do movimento na época. O livro, para o qual a entrevista foi feita, nunca saiu. Pena.].

Museu Antropologia
Entrada do Museu de Antropologia. Cara para os mexicanos, barata para os brasileiros.

A entrada do Museu de Antropologia custa 51 pesos (para nós, R$ 7); para os mexicanos, acho que é muito dinheiro, porque, ao dar uma gorjeta de 20 pesos (R$ 3; para eles) para um porteiro do hotel, meu colegas mexicanos me olham com espanto.

Adentramos um pátio central. Enorme, coisa como um campo de futebol, acho. O museu é quadrado, com essa grande área livre ao centro, de onde brota uma fonte de água enorme, com uns 10 m de altura. O vapor d’água ajuda a melhorar o nível de umidade (a cidade é seca). O museu tem, acho, dois andares. Ficamos cerca de seis horas. Mal foi possível conhecer a parte inferior. É visita para, no mínimo, dois dias.

Seria aqui de pouca valia descrever ao leitor tamanha quantidade de peças. Assim, me fixarei em dois momentos marcantes para mim. O primeiro deles é extremamente sem graça: um quadro (talvez, pintado a óleo), sem valor artístico. Coisa de 4 m por 2 m. Mas nele há algo que me impressionou: a quantidade de pirâmides maias espalhadas ao sul do país. Em minha ignorância, sempre achei que havia no México poucas pirâmides (a mesma ignorância me diz que no Egito é assim, confere?). O tal quadro insosso mostra dezenas e dezenas delas. A maioria, se me lembro bem, no alto de montanhas. Todas no meio da selva (o sul do México é assim). Imagino que o local exato de construção delas deveria ser tarefa de um xamã ou coisa que o valha. 

Um complexo de inferioridade recai sobre mim, quando lembro de nossos índios

Um complexo de inferioridade recai sobre mim, quando lembro de nossos índios. Meu alento é um trabalho muito bonito feito por dois antropólogos do Museu Nacional, Bruna Franchetto e Carlos Fausto, com um colega norte-americano, mostrando que na Amazônia houve construções monumentais, abrigando milhares de habitantes. O trabalho saiu na Science, com ampla repercussão na mídia de aqui e de fora. Teve comentário na Ciência Hoje (de Eduardo Viveiros de Castro, do Museus Nacional). Há aqui reportagem sobre o assunto.

O segundo destaque da visita é um objeto que sempre quis conhecer (mas adianto que não sabia que iria encontrá-lo ali): a pedra do Sol, esse círculo com uns 4 m de diâmetro (chute). A surpresa de vê-lo, ali, já ao final do passeio, descarrega em mim um história marcante, da época da faculdade (a de jornalismo) e das aulas de física e matemática no Ensino Fundamental e Médio.

[Segunda divagação: 1996, com incerteza de um ano para mais ou para menos. Uma colega de faculdade (ela, aluna de publicidade) ajeita para mim e para Antônio, amigo de longa data, um encontro com alguém com alto posto na seita União Vegetal, em São Paulo. Queríamos tomar a ayahuasca. No encontro (acho que foi em uma casa na Lapa ou Pompeia), o tal mestre nos pergunta se consumíamos droga. Bem… Antônio estava, digamos, empapuçado de maconha. Negamos peremptoriamente o consumo (ou melhor, Antônio se encarregou de fazer isso, com aquela cara de quem repudia os tóchicos ou qualquer outra substância ilícita). No local de consumo da ayahuasca, longe da cidade de São Paulo (só me lembro que Antônio foi multado por excesso de velocidade e subornou o policial), nos colocam entre membros experientes, em um templo grande, oval, no qual as mulheres ficam de um lado da arena e os homens do outro. Todos os presentes tomaram um terço de um desses copos de plástico contendo um suco denso, verde escuro e muito amargo. Vinte minutos depois, a música se transforma em cores. Impressionante. Continuo de olhos fechados. E aí começa a história da pedra do Sol. Um inca (ou seria asteca? Ou maia? ), que só vejo pelas costas, me guia no meio da selva. Andamos por trilhas estreitas, até chegar a um calendário gigantesco, que me foi apontado pelo guia. Toco a pedra, úmida. Sinto as reentrâncias. Olho-a de perto, minuciosamente. O efeito da droga está no auge. Meu guia indica que a caminhada deve continuar. Deixo o local com alguma hesitação (a tatilidade é prazerosa). Continuamos subindo, para chegar ao alto de uma montanha coberta pela mata densa. De lá, vejo a selva, um tapete verde denso, entrelaçado por um rio caudaloso. No quadro, há só três cores: o verde da selva fechada, o marrom das águas e o vermelho solar que se despeja sobre os outros dois elementos. Em minha alucinação, identifico aquilo com a Amazônia (portanto, meu guia teria que ser um inca). Passa o efeito. É madrugada. Não me lembro do que Antônio ‘sonhou’. Muitos outros tomadores têm a tal borracheira (vômito forte). Chego em casa às 5h da manhã, durmo uma hora, levanto e vou dar mais um dia de aulas. Estou estranhamente bem disposto, descansado. Tempos depois, identifico a pedra da visão com a pedra do Sol. Mas ela estava em algum lugar no México…].

Sinto tremenda vontade de tocar a pedra do Sol, na esperança de que algo da sensação da ayahuasca volte. Há um vigia ao lado dela. Chance zero.

De táxi, vamos a uma taqueria (sim, lugar onde se comem tacos). Arturo escolhe meu menu. Uma tábua de carnes, com as tortilhas (‘pizzazinhas’ feitas de milho ou farinha). Põe-se a carne sobre a tortilha, enrola-se e come-se, com a mão mesmo. O suco, delicioso, é feito de uma flor de hibisco.

Arturo me explica que o local da taqueria é zona turística, com muitos bares de mala muerte

Arturo recebe uma chamada quando saímos do restaurante. São uns gringos querendo fazer algo de jornalismo científico na terra que ele invadiram umas 200 vezes, pelo menos, tomando metade do território mexicano (aos poucos, diz um colega, os mexicanos estão retomando o que por direito é deles). Arturo me explica que o local da taqueria é zona turística, com muitos bares de mala muerte. Pergunto o que significa a expressão: bares de mulheres que fazem striptease, onde servem drinks e se arruma sexo facilmente (bastando pagar). Concluo que a expressão mala muerte é profunda contradição em termos.

Resolvo voltar a pé para casa. Coisa de uns 8 km, imagino. Como diria Dona Glorinha, uma tia por afinidade: ‘Café pequeno’. Cidade plana; poderia andar por horas (no Rio, São Cristóvão-Santa Teresa nem dava para sentir as pernas doendo; o bicho só pegava no Santa Teresa-Posto 9, ida e volta).

Passo pelos grandes edifícios. Na ida, Arturo havia me falado sobre eles e o fato de o México ser zona sísmica. Os prédios com muitos andares, portanto, seriam como os bares de mala muerte: contradição em termos. Mas aí entra o México Primeiro Mundo, com tecnologia para fazer os edifícios aguentarem abalos de até não sei quanto na escala Richter, aquela na qual os geólogos medem a intensidade dos tremores de terra.

No caminho, passo por uma Sears (sim, aquela loja de departamentos que sumiu no Brasil; acho que o Botafogo Praia Shopping, no Rio, também conhecido como ‘Escada shopping’, era uma Sears).

Como algo. Começo a gostar da comida apimentada e, por sorte, Montezuma não me encontra para perpetrar sua vingança (diarreia).
À noite, vou passear no Zócalo, que sigo acreditando ser o nome daquela praça gigantesca onde há uma bandeira também gigantesca do México (descrita na parte 1 destas impressões). A praça está cheia de gente. Mas todas elas estão reunidas em mais ou menos quatro grupos. Em um deles, a multidão cerca um conjunto de mariacchis, todos vestindo aquele ‘smoking’ preto. Elegantes. São muitos, uns oito acho, incluindo mulheres. As pessoas ao redor cantam. Mas, apesar da torcida, não tocam minha preferida: Cielito lindo.

Vou ao outro aglomerado, que forma um círculo com uns 20 m de diâmetro. Um palhaço diverte a multidão pegando um casal para suas brincadeiras. O artista, já meio velho, parece não ter perdido jeito. É engraçado, e as brincadeiras são ingênuas, mas bacanas. Todos riem.

Em outra pequena multidão, há um contador de histórias (o dito cujo guarda incrível semelhança com um colega físico que fez o pós-doutoramento no CBPF recentemente: alto, traços indígenas acentuados e um cabelo invejosamente liso, negro e comprido, que ele arruma com um rabo de cavalo. Em tempo: meu olhar ‘antropológico’ de jornalista me faz notar que, na Cidade do México — acredito ser pela origem indígena de grande parte da população — a incidência de calvície é extremamente baixa). Eu já havia visto aquele contador de histórias mais cedo, em frente ao Palácio de Iturbide, contando algo sobre como alguém tentava enganar o diabo. Peguei só fim, e os aplausos.

[O mesmo sociólogo que me deve uma explicação sobre o Hospital de Jesus e a caixa forrada de cadeados na Catedral talvez possa me esclarecer se esses contadores de história são tradicionais no México.].

Tiro minha conclusão: a vingança dos mexicanos contra os norte-americanos é que eles, os mexicanos, se divertem com pouco, sem dinheiro, sem ver no outro um inimigo em potencial. A felicidade está ali. Basta ir à praça e rir, cantar e ouvir.

E dançar.

O destaque do dia (e da noite) fica para o bailado ao lado da Catedral (do lado de fora das grades desta). Ao centro, há um altar com oferendas, com flores, onde também se queima muito incenso, com cheiro semelhante ao usado nos centros de umbanda no Brasil.

Atrás desse arranjo, estão uns quatro ou cinco percussionistas, que descem o sarrafo (com a ajuda de baquetas grossas) em tambores parecidos com tumbadoras (atabaques). Os ritmos são simples e têm um cadência que lembra as batidas africanas. Um grupo central de bailarinos está todo vestido com indumentárias que acredito ser de inspiração asteca (por sinal, uma colega brasileira me diz que o nome asteca é invenção dos espanhóis; os mexicanos dizem mexicas; faz todo o sentido do mundo para mim, pois o nome México seguia misterioso até essa conversa).

As pessoas vão chegando e se juntando, pouco a pouco, ao bailado, cuja coreografia é determinada por um homem vestido de caveira (malha preta, do pescoço aos pés, com ossos pintados de branco), com longos penachos na cabeça e chocalhos amarrados ao corpo. Todos os bailarinos também vestem indumentárias típicas e têm chocalhos nos pés (alguns, no pulso). O círculo de pessoas se fecha, se abre; gira no sentido horário e anti-horário; caminha um pouco para a esquerda, outro tanto para a direita… Às vezes, os pés dos dançarinos abocanham um pedaço do pano estendido no chão onde os camelôs vendem de objetos tradicionais da cultura mexicana a camisetas com estampas da cultura pop norte-americana. Ninguém reclama, tratando apenas de afastar o pano com as mercadorias (por sinal, fiquei com a impressão de que o povo mexicano é extremamente pacífico).

Mais pessoas vão se juntando ao bailado. Todas elas, no entanto, com roupa do cotidiano, e algumas com chocalhos nos pés

Mais pessoas vão se juntando ao bailado. Todas elas, no entanto, com roupa do cotidiano, e algumas com chocalhos nos pés. O resultado é um som impressionantemente intenso, que se soma ao dos atabaques. Os tocadores fazem pequenos intervalos, a cada 30 minutos de dança, acho. Mas, assim que um deles começa a bater nos tambor, os outros vão atrás. E a multidão recomeça os passos.
Todos olham, a todo instante, para a caveira. Ela é quem manda, quem guia seu povo, entregue temporariamente a um tipo de hipnose coletiva. Diferentemente do carnaval brasileiro, ninguém ri: o ritual parece ser levado a sério, e cada um dá o melhor de si para realizar os passos, alguns sem muito sucesso, é verdade.

O México é como esse choque de mundos que ocorre naquele canto do Zócalo: de um lado da grade, a casa dos intermediários (que grande ideia, não?) de Deus na Terra; na calçada, o povo que segue outra entidade divina, mais terrestre (e, portanto, mais humana). Estou ali há quase duas horas. Nitidamente, passo a ser partidário da caveira. Prefiro-a ao que está do outro lado da grade de ferro.

Agora, a caveira (que imagino mexica) está guiando meus pensamentos, mantendo meu corpo estático. A caveira parece se importar comigo; eu, em retribuição, tento entendê-la.

Sou parte de algo que, na verdade, não consigo entender. Mas me sinto feliz.

[continua…]

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje / RJ

O jornalista viajou no final de novembro a convite do Instituto de Ciencia y Tecnología del Distrito Federal y la Universidad Autónoma de la Ciudad de México. O tema de sua palestra: ‘Jornalismo sobre ciência: história, formação, linguagem e o erro’.