Ciência e humanização no parto

O Brasil vive atualmente uma realidade alarmante em relação aos nascimentos: contrariando as recomendações das entidades nacionais e internacionais de saúde baseadas em dados científicos, o número de cesarianas tem crescido exponencialmente e já representa mais da metade dos partos realizados no país. Junto com esse crescimento, aumentam também os riscos para a mãe e o bebê. Diante desse cenário, se informar sobre o parto e as situações que o cercam torna-se essencial para toda mulher que pensa um dia em ser mãe.

Esse é um excelente motivo para assistir ao filme O renascimento do parto, em cartaz em várias cidades do Brasil. O documentário, de autoria de Érica de Paula e Eduardo Chauvet, é um bom ponto de partida para mobilizar as futuras mamães – e papais, por que não? – em torno de uma questão muito pouco discutida. Por meio de depoimentos de especialistas das mais diversas áreas – médicos obstetras, pediatra, epidemiologista, enfermeira obstétrica, obstetriz, psicóloga e até antropólogos –, compõe-se um panorama da assistência ao nascimento no Brasil, mais especificamente nos grandes centros urbanos, inseridos em uma cultura que vê o parto como ato médico, que deve ser cercado de intervenções – muitas vezes desnecessárias e traumáticas.

Se informar sobre o parto e as situações que o cercam torna-se essencial para toda mulher que pensa um dia em ser mãe

Os médicos ouvidos falam sobre os principais riscos associados à cesariana eletiva (sem indicação médica), como a prematuridade dos bebês e a maior chance de complicações maternas, e os motivos que estariam por trás dessa decisão. Além disso, mostram que grande parte das intervenções médicas realizadas durante o trabalho de parto e o parto não está respaldada nas mais recentes evidências científicas sobre o tema e desfazem alguns mitos associados a esse momento, como a impossibilidade do parto normal em caso de bebê com cordão umbilical enrolado no pescoço.

Em cerca de 1 hora e meia de filme, a relativa objetividade desses depoimentos contrasta com os relatos emocionados de mães que, mesmo contra a sua vontade, foram levadas a uma cesariana por indicações médicas precipitadas, inadequadas e até enganosas. Essas histórias deixam claro o abuso e o desrespeito que muitas mulheres sofrem durante a gestação e o parto no Brasil.

Mas, uma vez desrespeitadas em suas escolhas de dar à luz seus filhos em um parto normal, essas mães buscaram informações que lhes permitiram ter uma segunda (ou até uma terceira) chance de viver a experiência que tanto desejavam.

Parto natural idealizado

Nesse contexto, o parto natural, em que as intervenções médicas só ocorrem quando necessário, é apresentado como opção idealizada. Embora essa concepção de parto esteja de acordo com o que a ciência recomenda, sua representação no filme – sobretudo em se tratando das escolhas imagéticas – não traduz o longo e, muitas vezes, doloroso e extenuante processo natural de nascimento.

Imagens de tranquilidade e alegria em partos naturais e depoimentos de médicos, parteiras e mulheres que passaram por essa experiência nos levam à conclusão correta de que o parto natural (ou humanizado, como também é chamado) é uma alternativa segura – desde que não haja complicações na gestação – e pode ser menos traumática para mães e bebês. Mas também faz parecer que toda mulher vai suportar facilmente a dor de um parto sem anestesia e que não há momentos de tensão em partos naturais, o que certamente não é verdade.

Essas cenas de serenidade e êxtase contrastam fortemente com imagens chocantes de partos medicalizados: mulheres são cortadas e bebês, muitas vezes, arrancados de dentro da barriga, submetidos a uma série de procedimentos invasivos desagradáveis em seu primeiro minuto de vida e privados de um contato imediato com suas mães. É claro que, em muitos partos, é isso o que acontece, mas nem sempre a experiência é traumática. Além disso, é preciso ter cuidado para não passar a mensagem de que a cesariana é a maior inimiga da mãe e do bebê, pois, em alguns casos, ela pode salvar vidas, como o próprio documentário afirma.

Cena de 'O renascimento do parto'
O documentário resgata a imagem do parto como um evento fisiológico natural, que fortalece o vínculo entre a mãe e o bebê. (imagem: reprodução)

As imagens impactantes e o contorno dramático das histórias pessoais das mães – uma espécie de fio condutor do documentário – conseguem sensibilizar o público: não foi raro, no cinema, ouvir entre os espectadores (a maior parte mulheres, incluindo muitas gestantes) aquela respiração rápida, típica de quem está tentando conter o choro. Mas há que se tentar separar a emoção da razão, para não esquecer que o parto natural só é uma alternativa segura nos casos de gestação de baixo risco e que as cesarianas podem ser necessárias – embora nada justifique os elevados percentuais atuais de realização dessa cirurgia.

O filme compara ainda a realidade obstétrica do Brasil com a de outros países, como Holanda e Nova Zelândia, em que o número de cesarianas e de intervenções médicas em geral no parto é baixo e dar à luz em casas de parto ou na própria casa é opção de uma parcela significativa da população. Mas peca ao não mencionar o custo de um parto domiciliar assistido por profissionais certificados no Brasil e o baixo número de casas de parto no nosso sistema de saúde.

Para além da medicina

Algumas questões também poderiam ser mais bem desenvolvidas do ponto de vista científico, como a crítica ao uso difundido da ocitocina sintética, hormônio que acelera as contrações uterinas e o trabalho de parto.

Pesquisas indicam que a administração indiscriminada dessa substância – como costuma acontecer atualmente – pode gerar efeitos negativos para o feto, mas seu emprego pode ser necessário em alguns casos. No entanto, o filme opta por questionar sobretudo os impactos de longo prazo da falta do ‘hormônio do amor’ – como é chamada a ocitocina natural, liberada em condições específicas do trabalho de parto – nos nascimentos, seja pelo uso de ocitocina sintética ou pela realização de cesarianas.

Diante disso, os pesquisadores nos convocam a refletir sobre o futuro de uma civilização nascida sem esse componente básico, tanto do ponto de vista evolutivo quanto psicológico, e evocam a ciência para respaldar a afirmação de que nossa capacidade de amar é, em grande parte, construída no momento em torno do nascimento.

Fiquei me perguntando como seria possível obter dados científicos sobre o surgimento da nossa capacidade de amar e, mais que isso, como transformar uma característica tão subjetiva em objeto concreto de estudo.

Confira abaixo o trailer promocional do filme O renascimento do parto

Apesar de o documentário não se restringir aos argumentos médicos embasados em pesquisas científicas e dar voz a alegações de outras naturezas – psicológicas, sociais, filosóficas e até espirituais –, essas abordagens alternativas não chegam a comprometer a credibilidade do conteúdo.

Independentemente dos recursos usados para denunciar e criticar a triste realidade obstétrica do Brasil, o grande mérito do filme é, além de informar, nos fazer refletir sobre escolhas importantes muitas vezes feitas sem a devida ponderação. Talvez muitas mulheres ainda continuem a optar pela cesariana ou a ceder à pressão de seus médicos. Mas, após assistirem a O renascimento do parto, essa decisão certamente não passará impune.

A CH On-line publicou em julho a série especial ‘Por um parto seguro’. Confira!

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line