Crítico comportado

Mais uma vez o Prêmio Nobel de Literatura é concedido a um escritor que muito provavelmente poucos brasileiros leram. O laureado foi o chinês Mo Yan, de 57 anos, que não tem sequer uma obra editada por aqui. Em Portugal, Mo Yan tem um livro traduzido e lançado em 2007, que atualmente se encontra esgotado: Peito grande, ancas largas.

Mais uma vez o Prêmio Nobel de Literatura é concedido a um escritor que muito provavelmente poucos brasileiros leram

Repete-se em 2012 o que ocorreu no ano passado, quando o poeta sueco Tomas Tranströmer, quase desconhecido no Brasil (com apenas um poema traduzido), ganhou o prêmio.

E quem, afinal, é Mo Yan? Segundo o anúncio oficial do Nobel, ele é um autor que “associa o realismo fantástico a fábulas, histórias e elementos contemporâneos”. Essas aspas serviram, inclusive, para justificar o prêmio (o Nobel é sempre justificado com uma breve frase, facilitando a vida dos jornalistas).

Ainda de acordo com o comitê de premiação, Mo Yan pode ser comparado, no Ocidente, com William Faulkner, em razão de seu humanismo, e Gabriel García Márquez, por conta do realismo fantástico que marca a sua obra.

O escritor chinês publicou, além de romances, ensaios e contos em sua terra natal. Sua entrada no Ocidente deve-se, sobretudo, ao filme O sorgo vermelho, adaptação para o cinema de seu livro homônimo, que acabou sendo premiada no Festival de Berlim de 1988. A partir daí, as obras de Mo Yan começaram a ser traduzidas com mais frequência na Europa (especialmente na França) e em países de língua inglesa. O Nobel destacou 17 obras de Mo Yan editadas na China.

Contradições políticas

Alguns veículos noticiaram que Mo Yan foi o primeiro chinês a ganhar o Nobel de Literatura. Não é verdade. O primeiro foi Gao Xingjian. A provável razão do erro: Gao Xingjian é um dissidente político, que, à época do prêmio (2000), já era considerado cidadão francês. Diferentemente de Mo Yan, nunca foi abraçado pelo regime chinês.

Le radisMo Yan, por sua vez, ainda vive na China. Com pais camponeses, começou a trabalhar com agricultura aos 12 anos. Em 1976, concomitante à gradual reabertura democrática na China pós-Mao Tse-tung, Mo Yan começou a estudar literatura. Seu primeiro conto foi publicado em uma revista literária em 1981. Estourou na China com o romance Touming de hong luobo, que saiu em francês com o título Le radis de cristal (algo como O rabanete de cristal, em português).

Apesar de não ter vínculos formais com o governo chinês – seu livro Peito grande, ancas largas foi inclusive censurado no país –, Mo Yan está longe de ser considerado um revolucionário. Prova disso é a declaração dada pelo artista plástico chinês Ai Weiwei ao jornal português Público. Ai Weiwei esteve preso ano passado após duras críticas ao regime de seu país. Apesar de livre, é hoje considerado um dissidente. “Dar esse prêmio a um escritor que conscientemente se dissociou das lutas políticas da China de hoje? Acho que é quase intolerável”, disse Ai Weiwei.

Crítico, mas sem cruzar fronteiras

Há sete anos morando em Pequim, o pesquisador e diplomata brasileiro Giorgio Sinedino, que traduziu recentemente Os analectos, de Confúcio, direto do chinês arcaico, falou à CH On-line sobre a tênue linha política na qual Mo Yan se equilibra.

“Na China atual, é possível criticar o governo como Mo Yan já fez, mas não é possível propor reformas, dizer ‘isso tem que mudar’; essa foi uma linha que Ai Weiwei cruzou e que Mo Yan nunca teve interesse em cruzar”, diz Sinedino. “Não quer dizer que a obra de Mo Yan não seja crítica; ele questiona, por exemplo, o patriarcalismo no interior da China, mas acaba não fazendo propostas contundentes de mudança”, completa.

O pesquisador não desvaloriza a importância da obra de Mo Yan – “Ele é, sem dúvida, um escritor com recursos, muito respeitado no país” –, mas acredita que o prêmio teve inegável caráter político. Sinedino explica que a recepção aos últimos Nobel concedidos a japoneses (inclui-se aqui o de Medicina ou Fisiologia nesta semana para Shinya Yamanaka) foi negativa.

Pior ainda era a expectativa de o escritor japonês Haruki Murakami – favorito das principais casas de apostas – ganhar o Nobel de Literatura nesta quinta-feira. Junta-se à estremecida relação entre Japão e China o fato de o último Nobel concedido a um chinês ter sido justamente para um dissidente: em 2010, Liu Xiaobo, ainda preso, ganhou o Nobel da Paz.

“Na China, esse Nobel está sendo celebrado como uma conquista política, sendo noticiado em jornais e na televisão”

“Aqui [na China] esse Nobel está sendo celebrado como uma conquista política, sendo noticiado em jornais e na televisão; está sendo muito diferente do que aconteceu com Liu Xiaobo, quando o anúncio demorou a ser divulgado e não foi comemorado”, afirma Sinedino.

“Na minha visão, dessa vez o governo chinês foi hábil na hora de usar suas frentes diplomáticas; é um prêmio com caráter oposto ao dado para Liu Xiaboo”, opina.

De fato, no texto de divulgação distribuído pela Academia Sueca, não há nenhum destaque para possíveis tensões políticas. As justificativas para o prêmio são estritamente formais.

Geração anos 80

Sinedino conta que Mo Yan faz parte da geração dos artistas da década de 1980 que, com a abertura política, passaram a se aventurar por um universo mais ocidentalizado em suas obras – não perderam, no entanto, o vínculo completo com a tradição. Essa geração de 80 pós-Revolução Cultural, diz Sinedino, chegou ao Brasil por meio de obras cinematográficas. Uma das mais representativas é justamente O sorgo vermelho, dirigido pelo chinês Zhang Yimou.

“A liberdade experimentada pelos artistas na década de 80 foi arriscada”, opina Sinedino. “O massacre em 1989 na Praça da Paz Celestial é uma reação do regime comunista ao que, no entender deles, estava saindo do controle.”

Segundo Sinedino, na China existe uma enorme burocracia para que um escritor seja publicado. Antes de qualquer coisa, ele deve fazer parte de uma associação nacional de escritores, subordinada ao ministério da educação nacional. O tradutor dá a entender que é necessário pertencer a certo ciclo – ter contatos e ser bem quisto pelo governo – para ser publicado. Seria o caso de Mo Yan.

O Nobel de Literatura de 2012 nunca levantou a voz contra o regime. Mo Yan é, inclusive, pseudônimo que significa, em português, “não fale” – apelido algo impreciso, que pode tanto funcionar como ironia política de quem se sente censurado quanto uma opção por, de fato, não se manifestar. Há quem pense das duas formas. O importante, agora, seria ler Mo Yan e tirar as próprias conclusões – de preferência, em português.


Thiago Camelo

Ciência Hoje On-line