Da informação na internet ao conhecimento na escola

Joãozinho, menino morador de uma área carente na periferia de uma grande cidade do Brasil, nunca teve muito interesse pela escola – não recebia grande incentivo em casa e seus professores eram, em geral, pouco motivados. No entanto, a introdução de laptops com acesso à internet banda larga em sala de aula e a capacitação dos docentes para o uso da tecnologia despertaram a curiosidade do garoto. Melhorou seu desempenho escolar e, com autorização para levar o equipamento para casa, transformou-se em um agente de inclusão digital na família e na comunidade.

Histórias semelhantes a essa poderiam – e deveriam – acontecer nas escolas públicas de todo o país. No entanto, na prática, a discussão sobre as políticas que visam à introdução da tecnologia na sala de aula é bem mais complicada do que parece. Questões como o acesso à internet de qualidade, os usos dados pelas escolas às máquinas, a regulamentação da rede no Brasil e a própria valorização dos professores são centrais para o debate de qualquer política pública de inclusão digital a partir da escola.

A engenheira Roseli de Deus Lopes, da Universidade de São Paulo, abordou a questão com um exercício de retórica: “É possível massificar a tecnologia?” A indagação, feita durante mesa-redonda sobre o tema na 64ª Reunião Anual da SBPC, remete à necessidade de criar um ambiente propício à introdução da tecnologia. “Apenas entregar os equipamentos na escola é o mesmo que instalar um aparelho moderno num hospital sem que ninguém saiba operá-lo”, comparou.

Computadores
Engenheira da USP envolvida no projeto ‘Um computador por aluno’ ressalta em mesa na reunião da SBPC que não adianta simplesmente entregar computador nas escolas; é preciso investir na capacitação dos professores. (foto: Flickr/ daryl_mitchell – CC BY-NC-SA 2.0)

Lopes foi coordenadora da fase inicial e da assessoria técnica e pedagógica do projeto ‘Um computador por aluno’ (UCA), uma das maiores iniciativas brasileiras para a inclusão digital a partir da escola. Ao longo dos últimos cinco anos, o projeto já chegou a cerca de 300 instituições de ensino brasileiras, com um total de 150 mil equipamentos distribuídos, e tem deixado claros alguns dos problemas políticos, ideológicos, burocráticos e econômicos envolvidos na questão.
 

Valorizar para incluir

Lopes defendeu que o primeiro passo para a inclusão digital não deve ser propriamente tecnológico: trata-se de recuperar a motivação do professor e o valor da escola. Segundo ela, existe uma realidade de desmotivação dos docentes, muito relacionada à concepção de que eles pouco podem modificar a vida dos alunos. “Em algumas escolas, observamos que o interesse despertado nos alunos pela introdução dessas tecnologias conseguiu renovar o estímulo dos próprios professores”, avaliou. “Se há alguém que pode fazer a diferença para uma criança, em especial aquelas que não têm uma base familiar sólida, é o professor.”

Lopes: “Se há alguém que pode fazer a diferença para uma criança, em especial aquelas que não têm uma base familiar sólida, é o professor”

Mas a entrada da tecnologia na sala de aula não é simples. Muitos professores nunca sequer usaram um computador, por isso, é preciso investir em capacitação. “Os docentes precisam ter base para conduzir as aulas e orientar os alunos, além de poder utilizar a rede para aprimorar sua formação, com leitura, cursos e parcerias”, defendeu a engenheira. “Entre os estudantes, a experiência nas escolas mostrou que é fundamental envolvê-los no projeto, com o estabelecimento de monitores, por exemplo, para estimular e valorizar sua participação.”

A ideia de utilizar um computador por aluno também abre a possibilidade de levar a inclusão para casa. “Não se trata apenas de levar a tecnologia para seus lares, mas de transformar o jovem em um potencial mobilizador de sua família e comunidade”, defendeu Lopes. “Acredito na inclusão social por meio da eliminação da exclusão digital.” Voltando ao exemplo hipotético da abertura desse texto, ele não é tão fantasioso assim, como revela a emoção de um pai ao ser apresentado ao computador pelo filho, participante do UCA.

Verba, burocracia e controle

Todas essas possibilidades, no entanto, esbarram nos mais variados tipos de dificuldades. “O UCA está preso na camisa de força do serviço público”, avaliou o educador Paulo Cysneiros, professor da Universidade Federal de Pernambuco e membro do comitê pedagógico do projeto. “Por conta das exigências das regras de licitação, os computadores levados às escolas não têm a qualidade que deveriam: seu sistema operacional é lento e cheio de defeitos, a bateria tem pouca duração, as telas são de baixa resolução e há uma grande deficiência na manutenção e na assistência técnica.”

Para Lopes, essa situação aponta para a necessidade de desenvolver tecnologia nacional. “Seria uma solução para baratear os custos e adequar os produtos às nossas necessidades”, defendeu. “Além disso, acredito que, com o poder de compra do Ministério da Educação, seria possível estimular as empresas a produzir equipamentos com as especificações que precisamos – mas é preciso definir essas características por meio da elaboração de uma política nacional.”

Cysneiros: a capacidade de se adaptar às diferentes realidades brasileiras é um desafio

A capacidade de se adaptar às diferentes realidades brasileiras é um desafio para qualquer estratégia nacional de inclusão digital. “A realidade das escolas é muito diferente de uma região do país para a outra”, argumentou Cysneiros. “São realidades sociais diversas e escolas com enormes diferenças, com problemas que vão desde a falta de infraestrutura adequada, com salas muito úmidas ou quentes, até as possibilidades muito diferentes de acesso à própria internet.”

Aliás, o acesso de qualidade à rede, que deveria ser um item básico para se falar em inclusão digital, ainda é extremamente limitado em muitas regiões. “É preciso levar a internet a todo o país e investir em um acesso realmente de banda larga, bem diferente do que existe hoje”, afirmou o mediador da mesa-redonda, o educador Nelson Pretto, da Universidade Federal da Bahia.

Pretto: Se não pudermos ter acesso à diversidade de conteúdo que a internet oferece, teremos um grande empobrecimento da rede

A polêmica sobre a regulação da internet no Brasil também está associada ao debate sobre a adoção dos computadores nas escolas. Pretto é um defensor da aprovação do Marco Civil da Internet, proposta que visa assegurar direitos e deveres aos usuários da rede no Brasil. “Se não pudermos ter acesso à diversidade de conteúdo que a internet oferece, com liberdade para baixar e subir arquivos, teremos um grande empobrecimento da rede, inclusive como promovedora do ensino”, avaliou.

Em escala menor, as leis que pretendem restringir as potenciais utilizações da rede funcionam como a política de limitar o acesso a determinados sites, comum em muitas escolas. “Se não posso entrar no Youtube, por exemplo, a possibilidade de aprofundamento dos temas proporcionada pela internet deixa de existir”, ressaltou. “É fundamental ter acesso à informação, e o local mais propício para aprender a transformar isso em conhecimento é a escola.”

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line

Acompanhe a cobertura completa da 64ª Reunião Anual da SBPC