Descompasso entre teoria e prática

Atualmente, mais da metade dos bebês nascem por meio de cesarianas no Brasil, embora pesquisadores, entidades internacionais e associações médicas, baseados em dados científicos, recomendem a realização de partos normais quando não há risco para a mãe ou para o bebê – situação de cerca de 80% das gestações. Mas, se as evidências sugerem o uso criterioso das cesarianas, por que, na prática, cada vez menos mulheres dão à luz filhos em partos normais?

Os motivos desse descompasso vão além das indicações médicas e parecem estar enraizados em uma cultura – também presente nos Estados Unidos, Irlanda, Rússia, República Tcheca, França e Bélgica – que valoriza a medicalização e o uso de alta tecnologia no processo de nascimento. Essa tendência começou a se estabelecer no Brasil a partir da metade de século 20, quando o parto passou a ser visto como um evento médico hospitalar e o modelo de assistência domiciliar, baseado em parteiras, foi substituído – ao menos na área urbana – por outro que incorpora cada vez mais metodologias diagnósticas e intervenções médicas.

China e Brasil são primeiro e segundo países no ranking mundial de cesarianas desnecessárias, que resultam em um custo combinado por ano de mais de 553 milhões de dólares

Essas mudanças nas práticas obstétricas se refletem no aumento dos índices de cesarianas no Brasil. Um estudo feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2010 identificou a China e o Brasil como primeiro e segundo países no ranking mundial de cesarianas desnecessárias, que resultam em um custo combinado por ano de mais de 553 milhões de dólares.

Segundo a ginecologista e obstetra Maria Helena Bastos, consultora nacional em saúde da mulher da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Índia, China e Brasil – respectivamente, primeiro, segundo e oitavo países do mundo em número de nascimentos por ano – tiveram rápida medicalização do parto e crescimento de suas taxas de cesariana como resultado de esforços para reduzir a mortalidade materna e neonatal.

Razões clínicas X pessoais

A epidemiologista Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora do projeto Nascer no Brasil, acrescenta que o índice elevado de cesarianas no país está associado ao método de trabalho dos médicos. “É mais confortável para eles marcar os partos em função de sua agenda”, diz. Uma análise realizada pelo Ministério da Saúde fortalece a hipótese de que as cesarianas são feitas com data e hora marcadas. De acordo com o estudo, os partos normais se distribuem de forma quase constante ao longo do dia e da noite, enquanto as cesarianas se concentram entre 8 e 22 horas.

Médica
O alto índice de cesarianas no país estaria ligado ao método de trabalho dos médicos e a fatores como comodidade e praticidade. (foto: Sxc.hu/ Kurhan)

A médica Lucila Nagata, membro do comitê de mortalidade materna da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do setor de gestação de alto risco do Hospital Materno Infantil de Brasília, reconhece o problema: “Teoricamente, a cesariana só deveria ser realizada quando há risco para a mãe ou para o bebê. Mas sabemos que não é isso o que acontece no Brasil.”

Além da comodidade, o risco de deslocamento durante a madrugada em grandes cidades e a falta de vagas nas maternidades interferem na escolha dos profissionais pela cesariana

Para investigar os fatores que influenciam a postura dos obstetras na escolha do tipo de parto de suas pacientes, a Febrasgo, o Conselho Federal de Medicina e a Agência Nacional de Saúde Suplementar conduziram em 2010 um estudo com mais de 3 mil médicos filiados à federação. Além da comodidade, o risco de deslocamento durante a madrugada em grandes cidades e a falta de vagas nas maternidades interferem, segundo a pesquisa, na escolha dos profissionais pela cesariana. “Em alguns locais, chega-se ao cúmulo de ter que agendar o parto na primeira consulta do pré-natal para garantir a vaga”, ressalta Nagata.

Outro fator que contribui para o grande número de cesarianas realizadas no Brasil é a remuneração. “Hoje, como forma de incentivo, o parto normal é mais bem remunerado do que a cesariana”, conta a médica da Febrasgo. Mas essa estratégia não tem surtido efeito, já que o parto normal costuma demorar muito mais e o valor pago por hora torna-se baixo. Para promover o parto normal, os médicos ouvidos na pesquisa sugerem melhorias nas condições de trabalho, qualificação profissional e uma melhor remuneração. Mas há um empecilho apontado pelo estudo: os formados recentemente, em sua maioria, não consideram a quantidade de cesarianas feitas no Brasil um problema.

Vontade materna

Aliada às razões dos médicos, a vontade da paciente também contribui, em muitos casos, para a escolha da cesariana. “A praticidade da cesariana, o mito da dor do parto normal e até o medo de ficar com a genitália alterada são fatores que influenciam essa decisão”, diz o obstetra Paulo Nowak, da Universidade Federal de São Paulo e membro da diretoria da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp). “Além disso, há no Brasil uma crença, que não é real, de que a cesárea é mais segura para o bebê.”

Segundo estudo realizado no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mulheres e médicos veem o parto normal como prática de risco e a cesariana como método seguro. A pesquisa ouviu 16 gestantes atendidas no setor privado e 13 no setor público na tentativa de compreender os significados atribuídos à gestação e a cada tipo de parto. As mulheres que preferiam a cesariana associaram a cirurgia à modernidade, à praticidade, a uma maior segurança, a um maior controle, à fuga das dores e da violência do parto normal e a uma forma de distinção social. “No imaginário médico e da população, a tecnologia assumiu grande valor. A qualidade do atendimento médico passou a ser considerada sinônimo de alta tecnologia”, diz a autora no estudo.

Cesariana
Em muitos casos, a escolha da cesariana é feita pela própria gestante, que associa a cirurgia a menos sofrimento e maior segurança. (foto: Flickr/ Ambernectar 13 – CC BY-ND 2.0)

Entre as mulheres que declararam preferir o parto normal, esse desejo baseou-se no caráter natural, fisiológico – e, por isso, mais saudável para mãe e bebê – desse tipo de parto e na melhor recuperação. No entanto, a escolha era acompanhada pelo medo e pela ansiedade sobre o nascimento e pela ideia de que sofrimento e risco estão presentes no parto normal. Sobre o posicionamento do obstetra, algumas disseram que o médico deixou claro que não faria parto normal.

A influência de fatores que não são de ordem clínica na realização do número excessivo de cesarianas no Brasil é corroborada pelo perfil das mulheres que optam pela cirurgia. Em sua maioria, elas pertencem a um nível socioeconômico elevado, são de cor branca, têm maior escolaridade, realizam mais consultas de pré-natal e estão no grupo de baixo risco. Estudo realizado com mais de 5.300 mulheres que deram à luz em hospitais de Pelotas (Rio Grande do Sul) em 1993 indicou que, independentemente do nível socioeconômico das gestantes, a escolha pela cesariana parece se basear na crença de que a qualidade do atendimento obstétrico está fortemente associada à tecnologia utilizada na cirurgia.

Embora muitas mulheres optem pela cesariana, a maioria das gestantes brasileiras – mesmo as atendidas no sistema de saúde privado – ainda prefere o parto normal, o que reforça a participação do médico na decisão final do parto. Segundo estudo realizado em quatro cidades brasileiras com 1.612 gestantes, há uma preferência de cerca de 70% a 80% pelo parto vaginal, tanto no serviço público como no privado. Apesar disso, houve uma taxa de cesarianas de 72% no setor privado – principalmente devido a cirurgias eletivas ou decididas nas primeiras horas após a admissão no hospital – e 31% no público.

A escolha da cesariana pela gestante parece se basear na crença de que a qualidade do atendimento obstétrico está fortemente associada à tecnologia utilizada na cirurgia

Em estudo realizado com 437 mulheres em dois hospitais privados do Rio de Janeiro, 35% das mulheres preferiam inicialmente o parto cesáreo e 48%, o parto vaginal. No fim da gestação, cerca de 70% das mulheres já tinham decidido pela realização da cesariana, seja por escolha delas próprias ou em conjunto com o médico. Mas o número de cesáreas efetivamente realizadas chegou a 88,1%, sendo que 92% delas foram feitas antes de a mulher entrar em trabalho de parto.

De acordo com a pesquisa, a escolha inicial das mulheres era influenciada pelo medo do parto normal ou da cesariana, pelas informações prévias sobre os tipos de parto, pelas histórias familiares e pela preferência do parceiro. Outros fatores importantes, especialmente entre as mulheres com gestações anteriores, eram as experiências dos outros partos e o desejo de ligar as trompas – embora a legislação brasileira não permita a realização da laqueadura no momento do parto, exceto em casos especiais, como risco de vida da mãe. Quanto maior a escolaridade das gestantes, menor foi a preferência pela cesariana.

Quando foi o médico quem indicou a cesariana, as principais causas relatadas foram: falta de passagem, hipertensão arterial e outros problemas de saúde da mulher, presença de circular de cordão no bebê e alterações de líquido amniótico. No entanto, o estudo mostrou que a grande maioria dessas indicações foi inadequada.

O obstetra Paulo Nowak destaca que a orientação da Sogesp e da Febrasgo é que o profissional deve transmitir à paciente todas as informações sobre cada tipo de parto. Mas a epidemiologista Maria do Carmo Leal diz que isso normalmente não acontece: “Os médicos não esclarecem os riscos da cesariana e ofertam esse tipo de parto como o mais seguro.”

Para reverter esse quadro, a médica Lucila Nagata acredita que o caminho seja investir na formação dos futuros profissionais. “Hoje as universidades formam excelentes cirurgiões, mas nem sempre formam obstetras preparados para acompanhar um parto normal”, avalia. “É preciso tentar modificar essa cultura a partir da base.”

Este é o segundo texto da série especial ‘Por um parto seguro‘, publicada esta semana na CH On-line. Confira!

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line