Duas vozes, um só cotidiano

“Você gosta mais de Chico ou de Caetano?” A pergunta, recorrente nos círculos sociais brasileiros, reflete a imagem dicotômica construída em torno dessas personalidades da música, algo que acontece em proporção bem menor com outros músicos contemporâneos – quantas vezes você já foi perguntado sobre gostar mais de Maria Bethânia ou Gal Costa?

Embora representantes da música popular brasileira, os dois compositores tinham projetos artísticos próprios

Embora representantes da música popular brasileira, os dois compositores tinham projetos artísticos próprios. De um lado, o baiano, com sua música ‘de vanguarda’, roupas extravagantes e empréstimos sonoros de ruídos e guitarras, expressava a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento. Tudo muito sintonizado com a modernidade internacional e os avanços tecnológicos.

De outro, o carioca – com ‘Construção’, ‘Essa moça tá diferente’ e ‘Apesar de você’ – cantava o homem simples do subúrbio, o samba e a política do país. Resistente ao tropicalismo, à cultura do ‘espetáculo’ e à indústria cultural. Defensor das raízes da cultura popular, da bossa nova e de Mário de Andrade.

Mas, então, o que está por trás de tão persistente comparação? A historiadora da Universidade de São Paulo Priscila Gomes Correa decidiu analisar a questão em sua tese de doutorado. Ela partiu das canções de Caetano Veloso e Chico Buarque que falavam sobre o cotidiano para tentar compreender melhor a imagem que opinião pública, imprensa e crítica construíram e reforçaram ao longo dos anos.

“Busquei entender o que esses dois artistas representaram e como influenciaram nossa sociedade e cultura ao longo de suas trajetórias”, explica Correa. Um detalhe: essa relação entre Caetano e Chico, observa a pesquisadora, é própria do Brasil – de nossas mídia e cultura. Na Europa, onde eles também são reconhecidos, compará-los ou mesmo associá-los está longe de ser uma tendência.

Cálice
Caetano (à esquerda) interpreta ‘A volta da Asa Branca’ no Phono 73, festival de música marcado pela crítica à censura. Chico Buarque e Gilberto Gil (à direita) tiveram seus microfones desligados enquanto cantavam ‘Cálice’. (fotograma: reprodução)

Da cultura à política

Para compreender essa tendência no Brasil, Correa não analisou só as letras das canções, mas empreendeu um trabalho minucioso de escuta para observar também voz, musicalidade, figurino e postura em palco. Além disso, resgatou centenas de entrevistas, nas quais os artistas deixaram registrados alguns de seus traços – muitas vezes banais, mas imediatamente associados a suas figuras públicas.

Numa delas, de 1977, Chico reclama da exploração política de sua imagem, em oposição à de Caetano: “Eu permito isto nas épocas de eleição. Agora, não posso permitir que se faça uma exploração política do meu nome para atacar o Caetano Veloso […] Algumas músicas dele, inclusive neste último disco, têm, nitidamente, preocupações sociais”.

Construção e Araçá-Azul
Discos ‘Construção’, de Chico Buarque, e ‘Araçá-Azul’, de Caetano Veloso. Nos anos 1970, com projetos mais amadurecidos, o primeiro consolida sua imagem de artista ‘resistente à ditadura’ e o segundo, a radicalização do seu tropicalismo. (imagens: reprodução)

Esse tipo de confronto – como Correa chama essa comparação eterna entre as duas figuras – mostra que seus nomes carregam consigo um conjunto de valores já assimilado pelo público. Outro episódio ilustrativo: depois de ser criticado por Caetano, em 2009, o ex-presidente Lula declarou: “Minha resposta a Caetano eu dei ontem à noite, quando ouvi o CD do Chico Buarque”.

Os próprios artistas já se manifestaram sobre essa relação. A historiadora lembra que suas declarações na imprensa eram bastante sugestivas – e iam além da ‘questão’ tropicalista, considerada o cerne da divergência entre os dois. Certa vez, Caetano comentou: “Às vezes penso que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque, mas é uma perseguição amorosa. E tem dado bons resultados já faz muito tempo”.

 

Eu quero que você venha comigo… todo dia

Exemplo desse bom resultado é o diálogo recorrente entre suas obras. Um dos momentos mais emblemáticos dessa interação se passou em 1972, no palco do teatro Castro Alves, em Salvador, onde os dois fizeram uma interpretação conjunta das canções ‘Você não entende nada’ (de Caetano) e ‘Cotidiano’ (de Chico). 

No palco, ambos cantavam a rotina, a repetição, de certo modo a opressão – mas também o desejo de transformá-las

No palco, ambos cantavam a rotina, a repetição, de certo modo a opressão – mas também o desejo de transformá-las. E fundiam seus estilos e letras no trecho que une as duas músicas: ‘eu quero que você venha comigo… todo dia’.

Por outro lado, a realidade apresentada por Caetano em ‘Você não entende nada’ – embora semelhante à de Chico em ‘Cotidiano’ – é cantada sob uma ótica mais crítica, por um personagem mais arredio. Faz referências a produtos industriais (“você traz a coca-cola/ eu tomo”), gestos cotidianos e um desejo (“eu quero que você venha comigo”) que não chega a se concretizar, marcado pela repetição insistente e que se transforma em espera.

É essa espera – como a de ‘Pedro Pedreiro’ – que indica a transição para ‘Cotidiano’. “A longa introdução é na verdade um processo de adaptação do tom”, explica Correa. “Chico subiu o tom para poder acompanhar Caetano.” Na canção de Chico, ainda mais pessimista, a rotina (“todo dia ela faz tudo sempre igual”) oprime o personagem. Ao mesmo tempo, “me calo com a boca de feijão” é a ditadura militar censurando o artista.

Para a historiadora, essa fase artística de ambos é caracterizada por um certo desespero. E o momento de transição das músicas é também, metaforicamente, o ponto de junção entre suas críticas sociais. 

Após percorrer 40 anos de produção artística dos dois músicos, Correa se arrisca a sintetizar: “Se fôssemos esquematizar os percursos artísticos dos dois, encontraríamos predominantemente um indivíduo que percorre as instâncias da cultura rumo à cotidianidade, em Caetano; e outro que percorre os espaços da cotidianidade rumo à cultura, em Chico”. 

Falando ou não a mesma língua, não importa. Mas construindo, juntos, uma representação do Brasil.

No documentário ‘Uma noite em 67’, Caetano Veloso fala da sensação de “organizar o movimento”. Assista.

 

Carolina Drago
Ciência Hoje On-line