Duplamente esquecida

No ano passado, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) produziu um documento de 58 páginas que apontava, detalhadamente, a situação das doenças negligenciadas no Brasil. Nessa lista, estão mais de dez doenças, entre elas a de Chagas, a dengue e a leishmaniose.

A ABC não falou, em momento algum, da leptospirose, doença que, segundo dados do Ministério da Saúde, atinge, por ano, 12 mil pessoas, causando a morte em 10% dos infectados.

Como referência, serve o exemplo da doença de Chagas, que afeta, em média, 60 pessoas por ano, com índice de óbitos tendendo a zero.

Por que a leptospirose não é incluída na lista de doenças negligenciadas?

Por que a leptospirose não é incluída na lista de doenças negligenciadas? É a mesma pergunta que o médico Mitermayer Galvão dos Reis, do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz na Bahia, faz.

“É uma doença que está acontecendo nas grandes cidades, na periferia das grandes cidades, onde moram os indivíduos pobres, sem saneamento, água, coleta de lixo”, falou o pesquisador, em debate na 63ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

“Quando chove em Salvador, nós sabemos onde vão ocorrer os casos de leptospirose – se nós sabemos disso e, mesmo assim, a doença ocorre, é porque ela está sendo negligenciada”, disse o médico.

A doença e as populações negligenciadas

A leptospirose é uma doença transmitida por animais (zoonose). Cães, gatos e, sobretudo, roedores carregam a bactéria Leptospira interrogans, transmitida aos humanos por meio da urina desses bichos. Quanto menos cuidado com as condições básicas de vida, maior é a possibilidade de a doença se propagar.

Má notícia: nota-se, na última década, aumento de casos nos centros urbanos – fruto do crescimento desordenado das cidades.

“É claro que os países ricos não têm interesse em tratar de doenças que não ocorrem no território deles”

No documento produzido pela ABC, é contada a história dessas doenças no mundo, desde a necessidade da criação, em 1970, de uma classificação para mazelas de saúde comumente encontradas em países subdesenvolvidos, até a reivindicação da inclusão de novas enfermidades específicas do Brasil na lista de doenças negligenciadas, como as pouquíssimo conhecidas doença de Jorge Lobo, esporotricose e cromoblastomicose.

A ideia final é que essas doenças preteridas entrem na mesma lista de referência mantida pela Organização Mundial da Saúde, que chama esse tipo de enfermidade de Doença ‘Tropical’ Negligenciada. O tropical, claro, tem a ver com doenças ocorridas em países com esse clima, em geral as nações mais pobres do globo.

A relação íntima do aumento de casos de doenças negligenciadas com os países pobres estimula um número cada vez maior de pesquisadores a dizer que, no fundo, o que há são doenças de ‘populações’ negligenciadas. O que naturalmente faz toda a diferença.

“É claro que os países ricos não têm interesse em tratar de doenças que não ocorrem no território deles, assim como a indústria farmacêutica não vai produzir medicamentos para quem não tem poder de compra”, afirmou Reis.

Mas, por que, afinal, é importante que a leptospirose entre na lista de doenças negligenciadas?

“Estar dentro dessa lista é garantia de aporte e dinheiro para pesquisas futuras”, disse o pesquisador. “Corro atrás de convencer as pessoas sobre isso: se a leptospirose não entrar na seleção de doenças negligenciadas, vai ficar sem horizonte nas principais discussões sobre a saúde pública brasileira.”

“Ser, de fato, uma doença negligenciada e não entrar nessa lista é uma dupla negligência, compreende?”

Assista a uma vídeo-entrevista com
Mitermayer Galvão dos Reis

    


Thiago Camelo

Ciência Hoje On-line 

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