Entre o popular e o erudito

Quando se fala em folclore, é comum imaginar costumes e celebrações diretamente ligados às populações mais pobres, sem nenhuma relação com a esfera erudita. No livro Dança Popular: Espetáculo e Devoção, a socióloga Marianna Monteiro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Associação Cultural Cachuera!, coloca esse paradigma em questão. A obra, que teve origem em sua tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, expõe os intercâmbios entre as culturas popular e de elite no Brasil desde os tempos do Antigo Regime português.

Monteiro analisou especificamente o congo e o bumba meu boi, dois tipos de dança ainda muito presentes no país

Monteiro analisou especificamente o congo e o bumba meu boi, dois tipos de dança ainda muito presentes no país, tratados por diferentes nomes, de acordo com a região. Os congos são festas que, a princípio, eram protagonizadas por escravos desde o século 16 em Portugal. Durante as danças, um rei negro é eleito e reverenciado, prática que remete ao reconhecimento prestado aos antigos soberanos do Congo, aliados dos portugueses na África. Já o bumba meu boi, relacionado em alguns aspectos às cavalhadas da época imperial, consiste na encenação da morte e ressurreição de um boi, com inúmeras variações no enredo.

Foram quatro anos viajando pelo país para acompanhar essas manifestações, além da pesquisa em documentos históricos que descrevem eventos culturais. “Pude observar que, até o século 19, era muito mais difícil fazer distinção entre popular e erudito”, afirma a socióloga. “Sempre existiu a separação entre povo e elite, mas, culturalmente, os limites eram bem menos óbvios”. Um dos fatores que contribuíam para isso era a forte influência do Estado português na formação das danças das classes mais pobres.

Segundo Monteiro, as festas populares eram parte importante de um projeto político-teológico já que, durante o Antigo Regime, Estado e Igreja eram praticamente inseparáveis. Portugal, por meio de proibições ou estímulos, tentava moldar todo tipo de manifestação, de forma que os simbolismos envolvidos reforçassem a imagem do rei como figura soberana e do catolicismo como única fé salvadora. Isso explica a grande frequência com que batalhas entre cristãos e mouros eram (e ainda são) temas presentes em congos e bumbás.

Bumba meu boi
Bumba meu boi em Olinda, Pernambuco. Apesar de personagens e detalhes do enredo variarem muito, todas as tradições falam de um boi que é morto e ressuscita. (foto: Flickr/ michael_swan – CC BY-ND 2.0)

Outro exemplo da influência do poder oficial sobre a cultura é a ideia de corpo místico. Criado para fundamentar o poder do papa, o conceito acabou sendo adotado pelo Estado português. Se a Igreja era um corpo e Cristo – representado pelo pontífice – sua cabeça, a cabeça do corpo social era o monarca, responsável por manter a ordem entre os homens. Além disso, em muitos eventos promovidos pelas elites, a presença de números de dança popular era obrigatória.

É importante ressaltar, no entanto, que para os escravos, o congo era visto como um ato de resistência. Uma forma simbólica de o negro reafirmar suas origens e rejeitar, ainda que internamente, a dominação. No prefácio ao livro de Monteiro, a crítica literária Walnice Nogueira Galvão destaca como as danças são atravessadas por pares de opostos – barrocas e modernas, espetáculo e devoção, reivindicação de africanidade e desejo de integração na sociedade nacional. Aponta ainda como se revelam “uma efígie com duas faces”: “a face burlesca de uma brincadeira e por outro lado a transcendência da integração no corpo místico”.

Mudança de perspectiva

A partir do século 19, diversas transformações ocorreram no Brasil, a começar pela transferência da Corte portuguesa para o país, em 1808. “Isso provocou a europeização dos costumes entre a elite daqui”, afirma Monteiro. A presença do soberano na colônia amenizou a necessidade de afirmação constante do poder simbólico português.

Já no final do século, pouco depois da proclamação da República, o Brasil torna-se oficialmente laico. A partir daí, não só a Igreja perde o poder oficial do Estado, como outros tipos de manifestações religiosas são permitidas, o que enfraquece a influência do catolicismo sobre as festas populares, ainda que suas marcas perdurem até hoje.

Assista à apresentação de um grupo
de bumba meu boi no Maranhão

Esses fatores e outras inúmeras mudanças por que o mundo passava transformaram o modo como as elites encaravam a cultura dos mais pobres. “A partir do século 19, surge a ideia de folclore, que não fazia sentido até então”, nota Monteiro. O conceito passaria a abarcar as diversas manifestações populares, ignorando sua realidade histórica em prol da crença em uma cultura desenvolvida exclusivamente pelo povo brasileiro.

Outro equívoco do senso comum é imaginar que a origem do folclore está no campo. “Essas danças nunca foram rurais”, afirma a socióloga. “O que houve foi a expulsão gradual das populações mais pobres dos centros urbanos para essas áreas e, naturalmente, essas pessoas mantiveram seus costumes”, completa.

Um equívoco do senso comum é imaginar que a origem do folclore está no campo

Segundo Monteiro, atualmente é possível observar um quadro diverso, pois, com a urbanização de grande parte do país, as populações mais pobres passaram a habitar as periferias. “Hoje, os costumes folclóricos têm lugar nessas regiões das cidades”.

Outra preocupação do estudo foi compreender o motivo da sobrevivência dessas manifestações populares. Para a pesquisadora, o principal elemento que contribui para isso é o simbolismo que elas mantêm. “Essas festas ainda fazem sentido na vida das pessoas, pois são como um culto à memória dos ancestrais ao mesmo tempo em que funcionam como um instrumento que facilita o convívio dos participantes com o restante da sociedade”, conclui Monteiro.


Yuri Hutflesz

Ciência Hoje On-line