Fronteira viva

As fronteiras do Brasil geralmente estão no centro do debate sobre a soberania nacional. Mas, para além da questão do controle territorial, essas regiões limítrofes são palco de dinâmicas sociais que envolvem múltiplos atores. Na fronteira do Acre com o Peru, por exemplo, povos indígenas isolados e grupos que se instalam na área para exercer atividades econômicas protagonizam relações que evidenciam a mobilidade existente nesses limites territoriais.

“A fronteira é uma região viva”, enfatizou o antropólogo Txai Terri Aquino, pesquisador da Fundação Nacional do Índio (Funai), durante a 64ª Reunião Anual da SBPC. Ele explicou que os índios que vivem na fronteira do Acre com o Peru se deslocam de um país para o outro, fugindo das pressões exercidas por seringueiros, madeireiras e outros grupos que exploram economicamente a região. “Esses movimentos são como ondas que penetram de um lado e de outro da fronteira.”

Os índios que vivem na fronteira do Acre com o Peru se deslocam de um país ao outro, fugindo das pressões exercidas por seringueiros, madeireiras e outros grupos que exploram economicamente a região

Segundo Aquino, no século 20, milhares de pessoas migraram para essa área para estabelecer seringais. A ocupação promoveu a divisão da posse da terra entre pequenos grupos, o massacre de povos indígenas e o contato forçado com comunidades isoladas, que se refugiaram do outro lado da fronteira.

Já nos primeiros anos do século 21, foi a vez de madeireiras se estabelecerem no Peru, promovendo restrições territoriais e conflitos de índios isolados com não isolados e com outras comunidades da região, além de epidemias devido ao contato dessas populações mais vulneráveis com as chamadas doenças ‘dos brancos’. Essa situação levou os índios isolados a buscar refúgio novamente no Brasil.

Aquino ressaltou que a exploração madeireira não respeitou as reservas indígenas e os direitos dessas populações. “Os madeireiros peruanos invadiam as terras ou faziam acordos com alguns índios”, afirmou. A ameaça aos povos indígenas não cessou após a crise da atividade de extração de madeira, em 2008. “A infraestrutura montada por essas empresas passou a ser usada pelo narcotráfico”, disse.

Nova ameaça

Ainda neste século, outro ator se instalou no lado peruano da fronteira: as empresas petrolíferas, que passaram a exercer nova pressão sobre os índios. Segundo Aquino, em 2004, 13% da Amazônia peruana (o equivalente a 8,7 milhões de hectares) estavam loteados para atividades petrolíferas. Essa área passou para 48 milhões de hectares em 2007.

Em 2008, 49 milhões de hectares (72%) da Amazônia peruana eram usados para atividades petrolíferas

Em 2008, 49 milhões de hectares (72%) da Amazônia peruana eram usados para atividades petrolíferas. Grande parte dessa área está sobreposta a regiões de proteção ambiental, como unidades de conservação e reservas territoriais indígenas.

O antropólogo afirmou que, na região da fronteira do Acre com o Peru, há 31 registros de avistamento de índios isolados, 41 casos em que foram encontrados vestígios materiais (rastros, trilhas, acampamentos, restos de alimento) de grupos ainda não contatados e 35 confrontos armados entre índios isolados e grupos diversos, com cinco casos de morte (sendo três não indígenas e dois indígenas).

Mapa integrado

Para entender as dinâmicas que ocorrem na fronteira, um dos desafios enfrentados pelos pesquisadores, conforme enfatizou Aquino, é a falta de um mapa que integre as informações dos territórios dos dois países. “O mapa normalmente é preenchido do lado do país onde se está, com os dados de divisões políticas, hidrografia, relevo etc., e fica em branco do outro lado”, comentou.

Mapa integrado Acre-Peru
Aquino apresentou, durante conferência na Reunião Anual da SBPC, mapa que integra informações geográficas e políticas dos dois lados da fronteira entre o Acre e o Peru. (foto: Thaís Fernandes)

Na tentativa de resolver esse problema – ao menos na fronteira do Acre com o Peru –, Aquino participou da elaboração, junto com outros pesquisadores do Brasil e do exterior, de um mapa com informações integradas sobre a área, tanto do lado peruano quanto do brasileiro. Esse mapa vai permitir uma melhor compreensão da região onde estão inseridos esses povos indígenas.

Aquino ressaltou que “os índios foram empurrados para essa região de fronteira do Brasil” e hoje as terras indígenas ocupam 15% do território do Acre. Ele destacou ainda que esses territórios são os locais onde mais se preserva a biodiversidade e a floresta. “Há pressões, mas são pressões menores; e, em muitos casos, são os próprios índios que formam a primeira frente de resistência à entrada ilegal de madeireiros.”

Confira abaixo um vídeo em que o antropólogo fala sobre índios isolados no Brasil

 

Thaís Fernandes*
Ciência Hoje On-line

*Com a colaboração de Henrique Kugler

Acompanhe a cobertura completa da 64ª Reunião Anual da SBPC