História de um sucesso e duas tragédias

 

São muito justificadas as celebrações que o cinqüentenário da descoberta da estrutura do DNA vem recebendo de toda a mídia. O laboratório Cavendish, em Cambridge, Inglaterra, tornou-se local de visita em roteiros para turistas, curiosos por conhecer o local onde o norte-americano James Watson (1928-) e o inglês Francis Crick (1916-) trabalhavam quando tiveram a revelação da dupla hélice, mas esse momento mágico, é claro, pertence somente à história.

Watson e Crick com o modelo original da estrutura do DNA

Segundo pesquisas de historiadores, a data provável da descoberta está situada em ou próxima de 28 de fevereiro de 1953. A descoberta, em um único lance, da estrutura completa do DNA e das propriedades a ela inerentes contribuiu de forma decisiva para fazer com que o evento seja hoje considerado como o mais notável marco da biologia no século 20.

A estrutura em hélice dupla, constituída por uma sucessão repetitiva de fosfato ligado a um açúcar (a desoxirribose) na face externa da molécula, as orientações das hélices em direções opostas (antiparalelismo) em torno do mesmo eixo (co-axiais), mais a complementaridade dos pares de bases que ligam uma hélice à outra, no interior da molécula, permitiram a Watson e Crick, de imediato, a percepção dos processos fundamentais em genética.

Mutações, replicação da molécula por um mecanismo de molde/cópia complementar, linearidade da codificação da mensagem genética, tudo podia ser percebido pelo simples exame do modelo proposto. A estrutura, além de muito elegante, possuía todas as qualidades esperadas do material genético. Tratava-se do início da era da biologia molecular.

Contudo, a natureza do conhecimento científico não é tão simples como podem fazer pensar descrições como esta aqui acima. É por isso que a história das origens de uma descoberta de tamanha importância tem sido investigada sob os mais variados ângulos, não só por historiadores profissionais qualificados como também por cientistas direta ou indiretamente associados ao trabalho, ou até mesmo por pessoas simplesmente movidas pelo interesse do assunto e pela sua repercussão junto ao público em geral.

À esq., primeira página do artigo histórico da Nature de 25/04/1953 em que Watson e Crick propõem a estrutura do DNA; à dir., o laboratório Cavendish, onde ambos trabalhavam quando tiveram a revelação da dupla hélice

Julgo pertinente, em primeiro lugar, a incorporação de outros fatores a tais relatos para que seja possível nos aproximarmos da real natureza do processo, uma vez que ele está sujeito, enquanto atividade humana, a uma série de influências externas. Segundo, creio ser importante trazer à cena dois pesquisadores — a inglesa Rosalind E. Franklin (1920-1958) e o norte-americano naturalizado Erwin Chargaff (1905-2002) — que também pesquisavam o DNA, à época da descoberta, para revelar a face trágica da história.

Watson e Crick, segundo seus próprios relatos, constituíam um par que se complementava tão bem quanto um par de bases do DNA, apesar da diferença de 12 anos entre eles. Havia também semelhanças. Watson foi um jovem prodígio, que concluiu seu doutorado com 21 anos de idade, enquanto Crick, convertido recente à biologia, embora ainda não houvesse concluído seu doutorado aos 37 anos (participara da Guerra de 1939-45), já demonstrara sua genialidade crítica e criativa ao colaborar nos trabalhos em curso no laboratório Cavendish.

O percurso do trabalho da dupla não ficou livre de atropelos e fracassos. O estudo do DNA não era o assunto a que deveriam se dedicar em seus respectivos projetos de pesquisa, o estudo de bacteriófagos, vírus de bactérias (Watson) e a estrutura de proteínas por difração de raios X (Crick). Contudo, nas permanentes conversas que mantinham, o tema girava sempre em torno da questão por eles considerada fundamental em biologia naquele momento: qual é a estrutura do DNA?

A tal ponto que, depois de haver proposto, no final de 1951, um modelo fracassado para o DNA, com três cadeias, foram solicitados por seus superiores a não perder mais tempo e a retornar aos seus projetos. Foi o que fizeram, mas com relutância e não por muito tempo, pois o fascínio da pergunta não podia ser afastado. Para chegar à resposta correta, lidando exclusivamente com a construção de modelos, valeram a persistência e o talento dos dois, além de alguns acasos e informações experimentais produzidas por terceiros.

As tragédias de Franklin e Chargaff :

Rosalind Franklin havia sido contratada pelo diretor do laboratório de biofísica do King’s College, em Londres, para investigar a estrutura do DNA. Franklin foi escolhida por conta de seu currículo, que incluía em especial trabalhos originais sobre a estrutura do carvão, usando a difração de raios X, feitos em Paris. Devido à natureza do convite, Franklin voltou à Inglaterra imaginando que o assunto DNA estaria sob sua direção. Para sua grande surpresa, verificou ao chegar que outro laboratório na própria instituição, dirigido pelo físico britânico Maurice Wilkins (1916-), já se dedicava ao tema. Esse fato, associado à clara incompatibilidade que se estabeleceu entre os dois desde o primeiro encontro, e à personalidade de Franklin, de difícil convivência, levaram-na ao isolamento na realização do seu trabalho experimental.

Rosalind Franklin (1920-1958) e Erwin Chargaff (1905-2002)

Mas Franklin dominava a técnica e era hábil pesquisadora. Sozinha descobriu, em torno de novembro de 1951, que, variando a umidade da preparação, era possível obter uma figura de difração que indicava muito claramente a existência de uma estrutura helicoidal alongada (que ela chamou de estrutura B), ao contrário dos resultados obtidos com a estrutura desidratada, mais curta e compacta (estrutura A).

Por meio de cálculos adicionais, chegou à conclusão de que a cadeia de fosfato-desoxirribose se encontrava no exterior da molécula, com as bases no seu interior, que haveria entre duas e quatro hélices co-axiais, e avaliou o passo (distância correspondente a uma volta completa da hélice). Apesar disso, por razões desconhecidas, Franklin retornou para o estudo aprofundado da estrutura A. Talvez nesse momento tenha lhe faltado alguém com quem dialogar, provavelmente um biólogo, já que Franklin não possuía conhecimentos básicos em biologia.

A foto do diagrama de difração da estrutura B foi incluída em um relatório geral do laboratório, em fevereiro de 1952 e, durante uma visita de Watson ao King’s College, em torno de 6 de fevereiro de 1953, uma cópia da fotografia foi-lhe fornecida por Wilkins. Em pouco mais de 20 dias, com base na construção de modelos, Watson e Crick chegaram à estrutura correta. Quanto para isso teria contribuído o conhecimento da imagem obtida por Franklin, jamais saberemos, apesar dos depoimentos feitos pelos personagens envolvidos na história. Rosalind Franklin morreu de câncer aos 38 anos, quatro anos antes da atribuição do prêmio Nobel a Watson, Crick e Wilkins, pelo trabalho com o DNA.

Franklin descobriu que, variando a umidade da preparação, era possível obter uma figura de difação que indicava a existência de uma estrutura helicoidal alongada (B), ao contrário dos resultados obtidos com a forma desidratada, mais curta e compacta (A)

Erwin Chargaff foi um dos raros cientistas a reconhecer de imediato a importância profunda do trabalho do bacteriologista norte-americano naturalizado Oswald Avery (1877-1955) e colaboradores, em 1944, que demonstrava, além de qualquer dúvida razoável, que o material genético é constituído de DNA. Concluiu então com rapidez os trabalhos em andamento, para se dedicar integralmente ao estudo do DNA.

Suas descobertas, com base na determinação da composição do DNA de numerosos organismos, invalidaram a teoria vigente dos tetranucleotídeos, formulada pelo bioquímico norte-americano naturalizado Phoebus Levene (1869-1940), segundo a qual o DNA seria composto por blocos unitários de A-T-C-G. As chamadas ’regras de Chargaff’ postulavam que [A] = [T] e [G] = [C], sendo [N] as concentrações molares dos nucleotídeos, e que, em conseqüência, a relação [A] + [T] / [G] + [C] é um dado característico do DNA de cada organismo.

Chargaff tem contra si o fato de haver superestimado o valor da química para explicar o fenômeno biológico e de se recusar a aceitar a biologia molecular como uma nova disciplina, sucessora da bioquímica tradicional. Dizia que “os chamados biólogos moleculares exercem a bioquímica sem licença”. Na sua autobiografia, a descrição do encontro com Watson e Crick, em maio de 1952, em Cambridge, beira o fantástico. A dupla pareceu-lhe ambiciosa, agressiva e ignorante dos fatos básicos a respeito do DNA e insistente em mencionar a utilização de modelos helicoidais para o estudo do DNA. Seu trabalho foi reconhecido apenas a posteriori pois, na frase de Crick, foi o modelo que revelou o significado das regras de Chargaff, e não o inverso.

Pela sua enorme erudição químico-biológica e humanística, pelo seu típico humor judaico, agudo e irreverente, pela sua confessa automarginalidade na comunidade científica, pela remota possibilidade de suas descobertas serem úteis, isoladamente, para antecipar a estrutura do DNA, e pelo abandono no qual terminou sua vida, tudo relatado em uma pungente autobiografia, Chargaff permanece uma personalidade fascinante.

Franklin e Chargaff encarnam duas tragédias que se desenrolaram em paralelo com a trajetória de sucesso de Watson e Crick.

Ciência Hoje 192, abril 2003
Darcy Fontoura de Almeida
Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Co-fundador da revista Ciência Hoje