Lineu na era da genômica

Lineu retratado pelo pintor sueco Alexander Roslin (1718-1793). Embora o naturalista seja conhecido sobretudo pelo sistema que propôs para nomear as espécies vivas, sua trajetória tem curiosidades menos conhecidas. Foi ele quem criou, a partir de elementos da mitologia grega, os ícones que representam os sexos masculino e feminino. Foi também ele quem propôs a inversão da escala Celsius, hoje usada em boa parte do mundo – antes disso, o ponto de ebulição da água equivalia a 0º, e o ponto de fusão, a 100º.

Homo sapiens. Canis familiaris. Aedes aegypti. Se você identificou de primeira as espécies por trás desses nomes latinos, é em boa parte por mérito de Carolus Linnaeus (1707-1778). Esse naturalista sueco propôs a notação binária usada até hoje para nomear os seres vivos. Poderá o sistema proposto por ele sobreviver à era da genômica, que está mudando profundamente a maneira como compreendemos as relações de parentesco entre as espécies?

A questão foi abordada durante a conferência do botânico Paulo Takeo Sano, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), na reunião anual da SBPC. Sano celebrou em sua palestra o legado do sueco, cujo tricentenário de nascimento foi comemorado em 2007. Ele acredita na persistência da nomenclatura de Linnaeus – ou Lineu, como também é conhecido na forma aportuguesada. “O sistema binomial é prevalecente ainda hoje e provavelmente assim continuará sendo nos próximos anos”, afirma o botânico.

A nomenclatura proposta por Lineu atribui a cada espécie viva um nome duplo – ou binomial – de origem latina, no qual a primeira parte representa o gênero e a segunda é um epíteto característico da espécie. Paulo Sano conta que a idéia do sueco teve alguma dose de acaso. “Para formar o binômio, Lineu associou ao nome do gênero um termo que, para ele, tinha apenas a função de facilitar a localização da espécie em suas anotações”, diz.

A novidade agilizou muito a identificação das espécies e simplificou a notação – a mera referência a uma planta podia então ocupar várias linhas. A nomenclatura teve ainda o mérito de popularizar a classificação botânica, até então uma ciência restrita a poucos iniciados.

A taxonomia lineana começou a ser desenvolvida em 1735, quando foi lançado pela primeira vez seu livro Systema Naturae (“Sistema da natureza”), que teve outras doze edições. Nessa obra, Lineu estabeleceu sua organização dos seres nos reinos animal, vegetal e mineral. “Ele enxergava o mundo como um grande quartel, no qual os seres se agrupavam em classes, ordens e outras divisões”, compara Sano.

Frontispício da décima edição (1758) do livro Systema Naturae (“Sistema da natureza”), do naturalista sueco Carolus Linnaeus (1707-1778). Nessa obra ele apresentou, pela primeira vez na esfera científica, uma divisão taxonômica da espécie humana.

A visão de mundo expressa por Lineu nessa obra traz, porém, pontos controversos. Na décima edição do livro, ele classificou a espécie humana em grupos raciais aos quais atribuía características morais. Com isso, ele se tornou um precursor do “racismo científico”, como mostrou Sergio Pena em sua coluna de julho na CH On-line.

 

 

Sobrevivência do sistema binomial

 

Do Systema Naturae,

porém, os biólogos registraram sobretudo o sistema de nomenclatura, que sobrevive até hoje. “Toda a nossa ciência taxonômica está baseada no sistema que ele criou”, resume Paulo Sano. Mas o que esperar desse sistema num cenário em que a biologia é cada vez mais marcada pelas revelações da genômica? Alguns cientistas têm defendido, por exemplo, que se adote um “código de barras genético” para classificar as espécies.

 

Da mesma forma, dados sobre o genoma de várias espécies de aves permitiram recentemente traçar uma nova árvore filogenética

desse grupo que revelou parentescos insuspeitos entre várias espécies até então tidas como distantes umas das outras. A nomenclatura proposta por Lineu estaria ameaçada por essa nova ordenação dos seres vivos?

 

Entrevistado pela CH On-line,

Paulo Sano afirmou não acreditar nisso, ao menos por enquanto. De acordo com o botânico da USP, é possível que os avanços no entendimento da base molecular da vida levem os taxonomistas a mudar os critérios em que se baseiam para classificar as espécies, mas eles não devem afetar a nomenclatura binomial – ao menos no futuro imediato.

 

É plausível vislumbrar, então, uma conferência que celebre o legado de Lineu daqui a 50 anos? Paulo Sano não tem qualquer dúvida quanto a isso, pelo próprio significado histórico da sua taxonomia. “Afinal, um sistema de classificação que sobreviveu por quase trezentos anos tem mérito o bastante para continuar a ser lembrado”, sintetiza o botânico. 

Bernardo Esteves

Ciência Hoje On-line

14/07/2008