Luz na floresta

Nos grandes centros urbanos, a proliferação dos campi universitários faz com que o impacto da academia na sociedade muitas vezes se torne menos evidente. No entanto, a instalação de universidades no interior da Amazônia, mais especificamente nos municípios do Alto Solimões, na fronteira com o Peru e a Colômbia, tem um impacto direto e profundo na vida social, política e econômica da região, tornando-se fundamental para levar ‘luz’ para as populações locais – inclusive no sentido literal.   

O Alto Solimões tem um dos menores IDHs e um dos piores níveis de ensino do Brasil, mas a presença da Ufam e de outras instituições na região pode mudar essas características

O Alto Solimões é uma das regiões com o menor Índice de Desenvolvimento Humano do país. Na cidade de Benjamin Constant, onde desde 2006 funciona o Instituto de Natureza e Cultura (INC), unidade da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), quase 64% da população encontra-se abaixo da linha de pobreza e o rendimento médio mensal de seus habitantes não supera R$ 200 per capita. A taxa de analfabetismo entre pessoas a partir de 15 anos é de cerca de 22%. O instituto atende alunos de todos os nove municípios do Alto Solimões e de 38 terras indígenas, que totalizam 240 mil habitantes. 

O antropólogo colombiano Juan Carlos Peña, professor da Ufam em Benjamin Constant, destaca a importância da universidade para mudar essa realidade, em especial devido à transformação que ela já começou a operar no ensino da região – 100% público, uma vez que não existem escolas particulares.

“Estamos no limiar da educação, temos os piores níveis de ensino do Brasil, não há ensino de idiomas, a quantidade de horas de aula é muito reduzida”, avalia. “Porém, a presença da Ufam e de outras instituições no Alto Solimões está mudando essas características; já temos alunos formados atuando nas escolas da região, estamos formando os futuros professores e isso terá um grande impacto em longo prazo.”

Confira no vídeo mais sobre as variadas transformações provocadas na região pela chegada da universidade
   

Agno Acioli, atual diretor do INC, ressalta o palpável ganho na autonomia e cidadania dos moradores do município com a atuação da universidade. O coordenador acadêmico do INC, Jorge Luís Lima, destaca um impactante exemplo dessa mobilização, quando, há alguns anos, a cidade, abastecida por energia termelétrica a diesel – que chega de Manaus pelo rio –, sofria com sistemáticos apagões.

“Faltava luz de quatro em quatro horas e um incêndio causado por velas chegou a matar duas crianças”, relembra. “A universidade buscou conscientizar a população sobre seus direitos, o que acabou levando à primeira grande manifestação pública da região. Foi arrepiante ver toda a população em frente à câmara municipal, de vela na mão. Uma semana após a mobilização, chegaram três geradores e até hoje não tivemos mais problema de energia.”

Extensão, extensão, extensão

Outro bom exemplo do impacto do INC foi um projeto que levou crianças da cidade para visitar os órgãos públicos e estabelecimentos comerciais da região. “Nos mercados, as crianças aprenderam sobre a importância da validade dos produtos, o que nunca foi valorizado aqui”, conta Lima. “Disso resultou uma pressão sobre os pais e sobre os varejistas, que passaram a trocar os produtos vencidos.” 

O coordenador afirma ainda que as transformações já foram sentidas inclusive no plano político. “Nas últimas eleições, houve uma grande mudança administrativa não só em Benjamin Constant, mas em todo o Alto Solimões; nenhum candidato conseguiu se reeleger”, comenta. “A conscientização da população sobre sua cidadania está ajudando a derrubar inclusive o coronelismo, o voto de cabresto na região.”

Campus Benjamin Constant
Em pleno processo de expansão, com a construção de novos prédios, o campus da Ufam em Benjamin Constant vem mudando a vida da região, principalmente devido aos muitos projetos de extensão desenvolvidos pelos professores nas mais diversas áreas. (foto: Marcelo Garcia)

Um dos motivos associados a todo esse envolvimento da comunidade local é o fato de a maioria dos projetos desenvolvidos no campus ser de extensão, ou seja, se dirige à população. No total, existem 137 projetos de extensão em andamento e 21 de iniciação científica, em diversas áreas. O grupo de Peña, por exemplo, realiza trabalhos de educação indígena, que levaram à realização de um curso pré-vestibular para essas populações. 

Já a química Lisandra Rosas, também professora da universidade, desenvolve projetos que envolvem o levantamento das plantas medicinais da região, a pesquisa de fornecedores locais para a merenda escolar e a criação de um clube de ciência itinerante no Alto Solimões. 

Outras iniciativas têm procurado desenvolver uma rede de atenção sobre a violência contra a mulher na região e proteger o conhecimento tradicional associado à agricultura familiar local – os dois trabalhos ainda serão abordados em detalhes neste especial sobre as atividades da Ufam em Benjamin Constant.

Veio para ficar?

Não é difícil observar o impacto social da universidade, mas os problemas para mantê-la em funcionamento ainda são muitos. A baixa renda da população e o baixo nível da educação pública dificultam a permanência dos alunos, apesar de a Ufam possuir sistemas de bolsas especiais para suas unidades no interior. “Precisamos dar condições para que os alunos, muitos oriundos de comunidades rurais e etnias indígenas, sigam seus estudos, com bolsas e programas de apoio pedagógico que ajudem nessa transição do ensino médio fraco para a universidade”, diz Lima.

Taxi fluvial
O acesso exclusivo por via fluvial é visto por muitos como um obstáculo ao desenvolvimento de Benjamin Constant. (foto: Marcelo Garcia)

Outras questões estruturais complexas são grandes entraves para a permanência dos profissionais no município. A região tem um grande problema de saneamento – 90% da população possuem abastecimento de esgoto ou de água inadequados – e há uma falta crônica de médicos de todas as especialidades. “Aqui em Benjamin temos basicamente um clínico geral, não há sequer oftalmologistas”, conta Acioli.

A própria cidade de Benjamin parece esbarrar em limitações estruturais para crescer. Em 2008, o total de carros do município não chegava a 20. Hoje só a frota de táxis tem mais de 30. “No entanto, não há postos de gasolina, o combustível vem de barco de Manaus e é vendido em garrafas, os cocões, na rua”, explica Lima. “Já houve inclusive grandes incêndios por causa disso e, para piorar, não temos corpo de bombeiros.”

Cocões
Limitações básicas de infraestrutura parecem atrasar o desenvolvimento do Alto Solimões. Em Benjamin Constant, combustível que chega de barco é vendido aos moradores no meio da rua, já que não há sequer posto de gasolina. (foto: Marcelo Garcia)

Para Lima, o problema central está na dependência da via fluvial: a cidade só é acessível por rio (três dias a partir de Manaus) ou de avião (2h30 sobrevoando a floresta até Tabatinga, com um preço salgado, e mais 25 minutos de barco). “Existe a possibilidade de abrir uma estrada até o Acre, que integraria a região e também os países vizinhos”, destaca, acrescentando que a universidade é o lugar ideal para debater com a sociedade uma questão complexa como essa, que envolve fatores ambientais, econômicos, sociais e políticos.

Tantos obstáculos evidenciam a necessidade de integrar o Alto Solimões ao restante do país para fortalecer o trabalho em desenvolvimento. “A universidade veio? Veio. Mas que condições estão sendo oferecidas para sua permanência? As pessoas que vêm pra cá não têm acesso a serviços de qualidade, não têm a estrutura a que estavam acostumadas”, avalia Lima. “Há planos de transformar esse campus em uma universidade autônoma, mas é preciso pensar no que é necessário para ele se consolidar.”

Marcelo Garcia*
Ciência Hoje On-line

*O jornalista viajou a Benjamin Constant a convite da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.