O agitado ano da física

Qualquer retrospectiva de 2012 que se preze – principalmente uma dedicada à área da física, como esta – precisa destacar ‘o’ acontecimento científico do ano: o anúncio da descoberta do provável e tão longamente procurado bóson de Higgs. Mas o ano foi bem mais agitado que isso. Tivemos avanços importantes na computação quântica e no estudo da antimatéria, por exemplo, enquanto o grafeno continuou sua trajetória de sucesso. Assuntos políticos também ganharam espaço, com a possível entrada do Brasil no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern). Mas quem polemizou mesmo foram os neutrinos – queriam derrubar a teoria da relatividade!

Mas comecemos do princípio. Talvez nenhum outro tema científico tenha chamado mais a atenção este ano do que o bóson apresentado pelo Cern em julho. A descoberta pode fechar o chamado modelo padrão, que explica a estrutura da matéria visível. Um evento histórico, um ápice do conhecimento humano cuja trajetória de pesquisa proporcionou muitos benefícios colaterais para a sociedade nas últimas décadas – ao menos na opinião do físico Ronald Shellard, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que já apresentou em detalhes seu ponto de vista em artigo publicado na Ciência Hoje (ver ‘Extraordinário Higgs’, na CH 296 – disponível apenas para assinantes do acervo digital).

O sucesso de uma iniciativa internacional organizada e integrada como a liderada pelo Cern, além do mérito científico, também pode apontar caminhos para enfrentar outras questões do nosso mundo contemporâneo, destaca Shellard. “O sucesso dessa cooperação mundial marca uma etapa da nossa civilização científica, um feito em si muito mais complexo do que levar o homem à Lua”, acredita. “Esse aprendizado talvez possa ser utilizado para explorar grandes problemas do mundo hoje, como as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade.”

Anúncio bóson de Higgs 2
Anúncio do provável bóson de Higgs foi feito por representantes do Cern, do Atlas e do CMS em cerimônia emocionante, que contou com a presença do próprio Peter Higgs. (foto: Cern)

Aliás, em 2012 foi debatida também a possível entrada do Brasil como membro do Cern. Considerada fundamental por boa parte da comunidade científica, a proposta enfrentou resistência pelo investimento necessário, mas pode ser confirmada em 2013. Na avaliação de Shellard, será um passo importante para o país: “O Brasil, pela produção científica que tem, precisa assumir papel de liderança”, afirma. “Isso abrirá as portas do centro para nossas indústrias de alta tecnologia, para a formação de profissionais e estimulará as ambições intelectuais das novas gerações, o que não tem preço”.

Voltando ao bóson, um dos aspectos mais interessantes do anúncio foi a repercussão que ele ganhou na imprensa mundial – mesmo sendo um tema complexo e abstrato. “Isso é reflexo do nosso tempo, da propagação rápida de informações e de uma consciência maior da necessidade de compartilhar resultados científicos”, afirma o físico brasileiro Helio Takai, pesquisador do Atlas há 16 anos. “O Cern explora muito bem a internet e realizou uma grande ‘campanha publicitária’ para promover essa pesquisa.”

Neutrinos, a relatividade e o big bang

Takai lamenta, no entanto, que outros assuntos não recebam o mesmo espaço na mídia. “Por exemplo, experimentos recentes com antimatéria, tão relevantes quanto o bóson, foram bem menos noticiados”, lamentou, referindo-se a resultados apresentados por outro grupo do Cern, o Alpha, que conseguiu medir pela primeira vez propriedades de átomos de antimatéria – uma conquista impressionante já que antiátomos desaparecem assim que têm qualquer contato com a matéria convencional.

Takai: “Experimentos recentes com antimatéria, tão relevantes quanto o bóson, foram bem menos noticiados”

Ainda na linha ‘desvendando os mistérios da existência’, um experimento realizado na China conseguiu medições, ainda que pouco precisas, do fenômeno que ocorre com neutrinos e antineutrinos do elétron (um dos três tipos de neutrino) ao viajar próximos à velocidade da luz. Nessas condições, eles naturalmente oscilam e se transformam nos outros dois tipos dessa partícula: neutrinos do múon e do tau.

Os dois estudos podem ser importantes para entender a formação de um universo abundante de matéria – presente nas estrelas, planetas e em nós mesmos – logo após o big bang. Se as duas fossem produzidas em quantidades iguais, matéria e antimatéria deveriam ter se aniquilado mutuamente, mas não foi isso que aconteceu. “Precisamos entender se existe simetria entre elas, apenas com inversão de cargas, e estudar esse processo de formação”, explica Takai. “Além disso, se suas propriedades não forem iguais, também poderemos precisar de uma nova física para explicar a antimatéria.”

Outro estudo com neutrinos, este europeu, chamou atenção pela polêmica. Ainda em 2011, o projeto italiano Opera apresentou dados que mostravam as partículas viajando mais rápido do que a luz – uma grave violação da teoria da relatividade especial. A hipótese, mesmo encarada com ceticismo, causou alvoroço. Este ano, após anúncios de problemas técnicos no Opera, novas medições bateram o martelo: os neutrinos estavam dentro da lei. Para físicos, o episódio marcou uma vitória do rigor do método científico.  

Nutrinos ultravelozes
Neutrinos ‘mais rápidos que a luz’ surpreenderam o mundo. No fim, tudo não passou de um engano: as partículas ainda respeitavam o ‘limite de velocidade’ universal. Episódio serviu para reforçar a confiança no método científico. (montagem: Marcelo Garcia | foto: Tainá Caro/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

Computação quântica

Sem sair do universo do muito pequeno, chegamos ao Nobel de Física. A láurea deste ano foi concedida a pesquisadores que foram pioneiros no controle de sistemas quânticos. Seus resultados mostraram que partículas subatômicas podem estar em vários estados simultaneamente e são fundamentais para a computação quântica. Aliás, apesar de computadores desse tipo ainda serem promessas, o campo teve novidades em 2012, como resultados apresentados pela IBM, estudos com protótipos de novos chips quânticos e até um eficiente computador quântico construído dentro de um diamante.

O físico Luiz Davidovich, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também destaca avanços na área de simulação quântica, importante para entender as propriedades quânticas dos materiais. “O avanço da computação quântica tem permitido simular sistemas físicos cujo tratamento matemático excede a capacidade dos computadores atuais”, explica Davidovich.

No fim do ano, cientistas austríacos também registraram um novo tipo de emaranhamento de fótons. “Partículas entrelaçadas seguem conectadas, compartilhando informações e características, mesmo quando separadas à grande distância”, explica o físico e colunista da CH On-line Carlos Alberto dos Santos, da Universidade Federal da Integração Latino-americana. “O resultado pode ser importante para a criptografia e para o desenvolvimento da computação quântica.” 

Entrelaçamento de fótons
Pesquisa que conseguiu um inédito entrelaçamento de fótons é mais uma que pode ajudar no desenvolvimento da computação quântica, sonho de consumo da ciência para os próximos anos. (imagem: Zeilinger et al/ Science)

De volta para o futuro

Outra figurinha fácil na mídia especializada nos últimos anos, o grafeno continuou com tudo em 2012. Depois de conferir o Prêmio Nobel de Física aos seus descobridores em 2010, o material segue fazendo sucesso – segundo Santos, foram publicados mais de sete mil artigos sobre o tema este ano. “Independentemente do destaque dado pela mídia, o grafeno e sua utilização na forma de nanotubos de carbono foi o assunto mais publicado do ano, o tema mais quente de 2012”, afirma o físico.

Santos: “O grafeno e sua utilização na forma de nanotubos de carbono foi o assunto mais publicado do ano, o tema mais quente de 2012”

O mergulho nanométrico possibilitado pelo material pode ajudar a produzir dispositivos eletrônicos cada vez menores e mais potentes: supermúsculos artificiais, nanosensores de bactérias instalados nos dentes, acumuladores potenciais para carros elétricos, lápis que desenham circuitos eletrônicos funcionais e até tecidos que captam energia solar ou que são invisíveis a olho nu e conduzem eletricidade. Outras pesquisas de destaque mostraram a permeabilidade do grafeno e utilizaram o material para interceptar e manipular a luz, o que pode dar origem a uma nova geração de sensores.

Santos destaca que, apesar das diferenças entre nano e microeletrônica, vivemos um momento parecido com os anos 1950. “Hoje, procuramos fabricar, em escala nanométrica, dispositivos similares aos atuais e encontrar novas aplicações para eles”, avalia. Para o físico, avanços na produção de sensores biodegradáveis e de dispositivos eletrônicos orgânicos também podem revolucionar a área nos próximos anos.

Menções honrosas

No ano do centenário da descoberta dos raios cósmicos, os cientistas viveram a expectativa da definição do local de instalação do novo observatório Cherenkov Telescope Array, que vai investigar mais profundamente essas partículas e outros enigmas como a matéria escura. Nessa disputa, o Brasil apoia a Argentina contra a Namíbia. “Trazer esse empreendimento para a América mobilizará a indústria brasileira para produzir a tecnologia necessária e mostrará o peso de nossa comunidade científica”, avalia Shellard, do CBPF. Muitos físicos brasileiros já se dedicam ao estudo dos raios cósmicos, inclusive no Observatório Pierre Auger, também na Argentina.

Por fim, algumas justas menções honrosas. Primeiro, aos cientistas japoneses que parecem ter conseguido sintetizar o que seria o já previsto e nunca encontrado elemento atômico de número 113 – que teria uma vida de apenas poucos instantes até se desintegrar em partículas menores. A verificação da descoberta é baseada justamente no estudo desses decaimentos.

Mapa de elétrons em uma molécula
Pesquisadores da IBM na Suíça desenvolveram uma técnica pioneira que permite observar vários processos de transferência de carga energética comuns na natureza. O estudo é o primeiro a obter uma espécie de mapa de elétrons em uma molécula complexa. A combinação com outras técnicas pode trazer avanços para a nanotecnologia. (imagem: IBM Research)

Outro grupo, da IBM, também conseguiu captar pela primeira vez imagens da distribuição de carga elétrica em uma única molécula, com detalhes da movimentação complexa dos elétrons.

E se você estranhou nosso silêncio a respeito da Curiosity, sonda-robô enviada a Marte e prodígio da engenharia, melhor conferir essa e outras notícias espaciais em nossa retrospectiva de astronomia, que será publicada amanhã.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line