O ano do vampiro

Era pouco mais de 17h30 do último dia 19 de julho, quando o escritor Eduardo Portela se dirigia à frente do salão nobre do Petit Trianon, na sede da Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro, para entregar um certificado que simbolizava o prêmio Machado de Assis 2012. O vencedor da honraria, anunciado um mês e meio antes, era o contista Dalton Jérson Trevisan, 87 anos recém-completados.

Na rotina de Trevisan, que mora sozinho no imóvel desde que se tornou viúvo, aquela quinta-feira não era muito diferente de qualquer outro dia

Mas, no mesmo horário, quem passava pela rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da XV, em Curitiba, podia ver, na casa do premiado, as venezianas internas das janelas abertas e uma luz acesa do lado de fora: o escritor não se preocupara em ir ao Rio receber a homenagem. Na rotina de Trevisan, que mora sozinho no imóvel desde que se tornou viúvo, aquela quinta-feira não era muito diferente de qualquer outro dia.

A atitude, longe de denotar vaidade, pode chamar a atenção de um leigo, mas é absolutamente compreensível para quem conhece a personalidade do escritor, que sempre evitou eventos públicos, principalmente aqueles em que é o centro das atenções.

Em 2012, episódios semelhantes ocorreram outras vezes – na entrega dos prêmios Bravo! Bradesco Prime de Cultura e Portugal Telecom, ambos em São Paulo – Trevisan foi finalista nos dois e vencedor do segundo na categoria conto. E ainda, no último dia 12, na outorga do prestigioso prêmio Camões, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Os organizadores da distinção, cujo júri foi formado por representantes de Brasil, Portugal, Moçambique e Angola, anunciaram em maio que a láurea iria ao autor de Cemitério de elefantes e O vampiro de Curitiba.

Mais importante reconhecimento da literatura em língua portuguesa, o Camões, para Trevisan, representa apenas a chave de ouro com que o ano se encerra. Não que o ‘vampiro de Curitiba’, cognome pelo qual ficou conhecido, menospreze a premiação – ele próprio a definiu como “o prêmio dos prêmios de literatura”. É que mesmo que a distinção não fosse concedida a ele, Dalton Trevisan continuaria ‘sobrando’ diante da quantidade de homenagens que recebeu neste que pode ser considerado ‘o ano do vampiro’.

Embora tenha recebido dezenas de prêmios ao longo da carreira, Trevisan teve em 2012 um ano particularmente especial. Além da ‘tríplice coroa’ (prêmios Camões e Machado de Assis pelo conjunto de sua obra, e Portugal Telecom pelo livro O anão e a ninfeta), ficou com o segundo lugar, na categoria contos e crônicas, nos prêmios Brasília e Jabuti.

Em maio, Trevisan ganhou uma sala exclusiva no museu de arte Guido Viaro, em Curitiba. Em junho, foi tema de uma edição especial do jornal Cândido, editado pela Biblioteca Pública do Paraná, a mesma que apresentou uma exposição do fotógrafo Nego Miranda, com registros baseados no universo de sua obra. No mesmo mês, foi homenageado pelo Museu da Imagem e do Som do Paraná com uma mostra de histórias suas que foram transpostas para o cinema. Em setembro foi reverenciado em 21 cidades paranaenses na Semana Literária do Sesc Paraná.

Sala Dalton Trevisan
Vista da entrada da sala Dalton Trevisan, inaugurada em maio passado no Museu Guido Viaro, em Curitiba. (foto: Célio Yano)

Curiosamente, todos os eventos estavam previstos antes do anúncio dos principais prêmios que recebeu. Para a crítica literária e teatral Berta Waldman, da Universidade de São Paulo (USP), os eventos coincidentes, nesta fase da carreira de Trevisan, revelam que sua obra tem valor como conjunto, ou seja, não é feita de sucessos episódicos.

“Trevisan é escritor programático e obsessivo que traça o itinerário de uma busca incessante, manifestada na repetição de situações e de personagens, e de um mesmo tema que se multiplica em voltas infindáveis”, diz Waldman, que estuda a obra do escritor desde seu doutorado, defendido em 1981 pela USP. A tese da pesquisadora virou livro em 1982, pela editora Hucitec, com o nome Do vampiro ao cafajeste: uma leitura da obra de Dalton Trevisan.

Sexo, violência e miséria humana

É difícil saber quantos prêmios o escritor, que deu apenas quatro entrevistas à imprensa na vida, recebeu ao longo da carreira. O primeiro é provavelmente a vitória no Grande Concurso de Contos do jornal Tinguí, realizado em 1939, quando tinha apenas 14 anos. Segundo artigo da historiadora Cassiana Lacerda Carollo, publicado em 1987 na revista Letras, da Universidade Federal do Paraná, era de Trevisan o texto vencedor da disputa, submetido com o pseudônimo De Alencar.

Sonata ao luarA vitória pode ser questionada, uma vez que o diretor do jornal promotor do concurso era o próprio Dalton Trevisan. Mas poucos anos depois, o escritor começaria a chamar a atenção. Em 1945, ficou em segundo lugar em um concurso de contos promovido pelo Grupo Editorial Renascimento do Paraná. É nessa época que lança a novela Sonata ao luar, seu primeiro livro publicado comercialmente, impresso nas oficinas da gráfica Mundial, de Curitiba. A obra hoje é renegada pelo escritor.

Entre 1946 e 1948 integrou a equipe responsável pela publicação da revista de cultura Joaquim. Embora já tivesse o nome em jornais de circulação nacional a partir de 1947 e críticas positivas de livros como Novelas nada exemplares, Morte na praça e Desastres do amor, Trevisan aconteceu efetivamente em 1968, quando superou 1.217 concorrentes e venceu o primeiro Concurso Nacional de Contos, na época o maior prêmio literário do Brasil, promovido pela Fundação Educacional do Paraná (Fundepar). Seu texto passou a se caracterizar, cada vez mais, pela brevidade e por temas como sexo, violência e miséria humana.

Hoje, 40 livros publicados depois, coleciona reconhecimentos os mais variados, como o primeiro lugar no concurso de contos eróticos da revista Status e os prêmios Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, Luís Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil, e Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional. Em 1996 foi agraciado com o prêmio Ministério da Cultura, na categoria literatura, pelo conjunto de sua obra. Tem cinco Jabuti e três Portugal Telecom, contando as edições de 2012.

Ao que consta, o único prêmio que recebeu pessoalmente foi o da Fundepar, em 1968, das mãos do governador paranaense Paulo Pimentel

Ao que consta, o único prêmio que recebeu pessoalmente foi o da Fundepar, em 1968, das mãos do governador paranaense Paulo Pimentel. Descendente de italianos e advogado por formação, já alegou timidez para justificar a ausência em espaços públicos; hoje aponta a idade como explicação.

É cidadão honorário de Curitiba e nome de rua em pelo menos cinco cidades do Brasil – homenagem pouco comum feita a pessoas vivas. Em maio de 1970, convidado a receber o título de Cidadão Benemérito do Paraná, não compareceu à Assembleia Legislativa, “por motivo de força maior”. Mandou o advogado e também escritor Vasco Taborda Ribas (1909-1997) para representá-lo.

A prática virou rotina em sua carreira de premiado. No dia 26 de novembro passado, quem buscou seu Portugal Telecom foi Gabriela Máximo, gerente de comunicação da editora Record, que publica seus livros. Em maio, na solenidade de entrega do prêmio Machado de Assis e no último dia 12, na outorga do prêmio Camões, foi representado por Sônia Machado Jardim, vice-presidente do mesmo grupo.

Ainda que a possibilidade soe remota, caso um dia Trevisan venha a ganhar o Nobel de Literatura (como já é especulado em fóruns de discussão sobre o assunto na internet), poderá ser o primeiro desde 1964 a faltar à cerimônia de premiação.

O mais sintético possível

“Mal a pobre se queixa:
– Ai, que vida infeliz.
Ele a cobre de soco e pontapé:
– E agora? Está se divertindo?
Apanha ela (grávida de três meses) e apanham as cinco pestinhas. Uma das menores fica de joelho e mão posta:
– Sai sangue, pai. Não com o facão, paizinho. Com o facão, dói.”
(Extraído de 99 corruíras nanicas, Rio de Janeiro: Record, 2002.)

Inspirado em notícia policial, bula de remédio ou em história de gente de seu convívio, Dalton Trevisan constrói uma obra formada por personagens de traços psicológicos universais. Põe em cena com frequência João e Maria, que, em eterna guerra conjugal, não representam tipos extraordinários, mas personalidades identificáveis em qualquer casal. Trata de pessoas medíocres e desgraçadas, mas também expressa lirismo e nostalgia em textos que ajudam a revelar um pouco de sua personalidade. Obsessivo pela concisão, tende a escrever cada vez mais curto. Seu caminho é “do conto para o soneto e dele para o haicai”, declarou certa vez, embora ocasionalmente lance uma novela. “Ele quer chegar ao miolo da matéria tratada, na forma mais sintética possível”, define a crítica literária Berta Waldman, estudiosa da obra do autor. Para ela, Trevisan tem um quê do escritor russo Anton Tchekov, que ele já disse admirar. Mas desde o início da carreira, segundo Waldman, o escritor curitibano conseguiu demarcar território próprio na literatura. “Pode haver características suas em outros contistas, mas nenhum reúne todas elas. Trevisan é único.”

Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR