O câncer e a última cruzada

Milhares de biografias reunidas em mais de 600 páginas. Algumas breves, resumidas a poucas linhas. Outras servem de fio condutor para toda a narrativa. Juntas, formam um caleidoscópio de personalidades, sonhos, frustrações, pequenas e grandes derrotas e vitórias para descrever dois lados de uma única e poderosa história: a biografia da doença mais desafiadora que o homem já enfrentou e a cruzada moderna da humanidade para superá-la.

A obra nos leva às ‘origens’ do biografado, apresenta seus ‘feitos’ e obstinados antagonistas. A única ‘falha’ é não terminar com um ‘ponto final’

O Imperador de todos os males: uma biografia do câncer é, em certo sentido, a essência do gênero biográfico. Leva-nos às ‘origens’ do biografado, conta seus ‘feitos’, apresenta seus obstinados antagonistas e até desperta um certo fascínio inquietante por sua ‘personalidade’. A única ‘falha’ é não terminar com um ‘ponto final’ – claro que não por culpa do autor, o médico indiano naturalizado norte-americano Siddhartha Mukherjee.

Vencedora do prêmio Pulitzer em 2011, a obra é um trabalho jornalístico de pesquisa impressionante. Com uma linguagem simples e envolvente, a narrativa combina suspense, drama e até intriga política ao entrelaçar a experiência pessoal do autor e uma farta coleção de referências históricas e científicas. O ritmo do relato acompanha o ir e vir da pesquisa, ao explorar alternativas paralelas, recuperar histórias e estudos esquecidos no tempo – e até refletir certa estagnação pontual, como na quimioterapia do fim da década de 1980.

Apesar de pintar um quadro forte das vidas impactadas pelo câncer, a obra passa longe do clima sinistro que se poderia esperar e tem o mérito adicional de apresentar, de forma clara, conceitos científicos complexos. De processos intracelulares e genéticos até metodologias de testes clínicos, Mukherjee cria um manual das estratégias de guerra contra a doença, para leigos e iniciados, de dar inveja a Sun Tzu.

Luz e sombra

A história começa na infância do biografado: o indiano busca nas memórias do homem os primeiros vestígios do câncer. Papiros egípcios, estudos gregos sobre a bile negra, a desesperança de um médico do Império Romano, esqueletos em tumbas ameríndias e cadáveres do Renascimento, limpadores de chaminés, descobertas de uma polonesa na França, gás mostarda e fábricas de corantes alemãs – são algumas das pistas do passado de uma doença ‘fantasma’ e pouco registrada.

Livro câncer capaEmergimos desse mergulho milenar para destrinchar a história da anatomia, da química, da biologia e da medicina do câncer nos dois últimos séculos, seguindo os passos – e as intrigas – da nata da pesquisa na área. É impressionante notar como, até a metade do século 20, essa era uma guerra de cegos: ora descritos como geniais, ousados e infatigáveis, ora como compulsivos e obcecados, tateavam na penumbra à procura de uma ‘bala mágica’ capaz de destruir o câncer.

Com um entendimento perigosamente parco dos mecanismos da doença, muitas das primeiras estratégias utilizadas, como a mastectomia radical e primitivas alternativas de quimioterapia, forçavam os limites do conhecimento e da ética de sua época, por vezes com efeitos quase tão devastadores quanto o próprio câncer.

Pesquisadores que se dedicavam a estudar a biologia da doença e seu tratamento passaram décadas trabalhando de forma isolada; eram como ‘conhecidos’ que frequentam os mesmos lugares, mas voltam para casa sempre sozinhos – a analogia é do próprio Mukherjee e reflete uma realidade que só começou a mudar na década de 1980, com o avanço da genética e o desenvolvimento de terapias mais específicas e menos agressivas.

Jimmy e Nixon
Uma jogada sagaz transformou o menino Einar Gustafson em Jimmy, garoto-propaganda da luta contra o câncer, e ajudou a colocar a doença na pauta política e social dos EUA. À direita, propaganda dos anos 1960, quando a pressão social sobre as empresas tabagistas era fomentada pelos lobistas anticâncer. (imagens: reprodução)

Outro ponto interessante é observar que as bancadas dos laboratórios são apenas uma das trincheiras dessa guerra. Na verdade, muitos dos grandes avanços só ocorreram quando a doença foi retirada das sombras à força, trabalhada na casamata do lobby político e exposta aos holofotes da mídia, transformando-se, só assim, no grande inimigo de uma cruzada moderna e definitiva.

Muitos dos grandes avanços só ocorreram quando a doença foi transformada no grande inimigo de uma cruzada moderna e definitiva

Mukherjee é um admirador do brilhantismo dos muitos ‘generais’ da frente anticâncer, como o patologista Sidney Farber e a socialite e lobista Mary Lasker, cujos esforços conjuntos colocaram a doença na pauta de discussão dos Estados Unidos.

Por outro lado, o livro também exalta a grandeza do biografado: poderoso, antigo e misterioso, o câncer é uma célula humana que leva às últimas consequências suas estratégias de sobrevivência – e cada pequena vitória sobre ele deve ser comemorada. Em síntese, O imperador de todos os males é uma obra rica, interessante e que desempenha seu papel nesse confronto milenar ao discutir abertamente e ajudar a desmistificar o câncer.
 

A trincheira brasileira

Era esperado, mas não deixa de ser curioso notar a pequena participação de coadjuvantes que não sejam norte-americanos ou europeus na obra – exceção feita a alguns pesquisadores de países asiáticos, muitos deles radicados nos Estados Unidos como o próprio autor.

É conhecido o pioneirismo dessas regiões no estudo do câncer e os Estados Unidos foram os primeiros a investir pesadamente no combate à doença, mas a ausência de brasileiros e latino-americanos é marcante.

O Brasil aparece apenas uma vez, em observações de um perspicaz oculista do século 19 sobre um câncer de córnea hereditário. Teria mesmo a pesquisa ao sul do Equador tão pouca relevância mundial? 

O imperador de todos os males: uma biografia do câncer
Siddhartha Mukherjee
São Paulo, 2012, Companhia das Letras
648 páginas – R$ 54,00

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line