Onde começa o caminho do chão

“Na terra em que o mar não bate, não bate o meu coração. O mar onde o céu flutua, onde morre o sol e a lua, e acaba o caminho do chão”, diz um trecho da canção “Beira-mar”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Podemos entender assim: se o mar é onde acaba o caminho do chão, o caminho do chão – naturalmente – começa no mar. É exatamente esse o ponto de Maria Cristina Leme, arquiteta e urbanista da Universidade de São Paulo (USP) e representante da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa Planejamento Urbano e Regional (Anpur).

“Na época colonial, o porto não era fundamental. A cidade baixa servia apenas como proteção”

Maria Cristina falou na terça-feira, pela manhã, na reunião anual da SBPC. O tema: as cidades brasileiras e sua interação com o mar. O lugar de contato entre água e concreto, entre o fim do oceano e o início da cidade.

– Na época colonial [1500 – 1822], o porto não era fundamental. A cidade baixa servia apenas como proteção. A concentração maior de pessoas se dava na cidade alta. Foi uma característica de todas as regiões do país, inclusive das não litorâneas – explica a urbanista.

De frente para o mar

Em 1808, D. João decretou a abertura do portos às nações amigas. O Brasil ganhava liberdade de comércio marítimo inédita até então. Só faltava um derradeiro incentivo para que a cidade ganhasse o mar: a independência. Ela veio em 1822. Logo, o governo do país estaria investindo em obras de aparelhagem da região portuária.

–  A partir dos investimentos nos portos, a porção da cidade próxima ao mar foi se modernizando. Virou a região central – diz Maria Cristina, que usa como exemplo de movimento em direção ao oceano a destruição do morro do Castelo, em 1921, no Rio de Janeiro.

portodorio
Pintura de 1841 retrata um porto do Rio de Janeiro ainda incipiente (foto: Wikimedia Commons).

Anos depois, cidade estabelecida. O centro se tornou um rascunho do que fora. As pessoas não cabem mais ali. Precisam ir para outro lugar. Assim, a zona portuária, antes central, começa a ficar cada vez mais distante. Outras formas de escoar mercadoria também aparecem. A cidade cresce na direção da periferia.

– De 1950 em diante, a centralidade vai se deslocando na cidade. As áreas nobres vão perdendo valor. No Rio, em São Paulo e nas grandes capitais, esse movimento é ainda mais claro. Os grandes hotéis, centros de convenções e melhores apartamentos rumaram para outro local.

Revitalização dos portos

Porto de Santos
Em destaque, o porto de Santos (SP), considerado um dos maiores e mais bem equipados do Brasil (foto: Aliança Europa / CC 3.0 – BY).

Nos últimos anos, o mar brasileiro ganhou sobrevida aos olhos da economia.  Uma senhora sobrevida, aliás, motivada em parte pela descoberta de grande quantidade de petróleo nas camadas do pré-sal – como lembrou alguém da plateia ao final do simpósio.

Maria Cristina concordou que a exploração desse recurso vai exigir infraestrutura moderna nos portos e em seu entorno. Nesse contexto, o movimento de revitalização das zonas portuárias brasileiras decolou. O Rio de Janeiro dá até nome ao programa de recuperação do seu cais. É o Porto Maravilha. Santos (SP) e outras cidades do país também contam com obras em seus portos.

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A questão agora é saber qual será o impacto ambiental dessas obras e da exploração do pré-sal. Vale sempre a menção a Gil e Caetano: o mar ainda é o lugar em que “acaba o caminho do chão”.

No vídeo abaixo, Maria Cristina Leme discorre sobre a relação do pré-sal com as demandas urbanas.

 
Thiago Camelo

Ciência Hoje On-line

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