Perdas, preocupações e polêmicas

Perdas, ameaças de suicídio coletivo em tribos indígenas, reeleição nos Estados Unidos, violência no Oriente Médio, julgamento político no Brasil, um dicionário processado. Em meio à enxurrada de acontecimentos – muitos deles aparentemente desconexos, mas que deixam suas marcas nas culturas e sociedades –, 2012 ainda teve tempo de ver uma Olimpíada e uma Paralimpíada – assim mesmo, sem o ‘o’.

Velho, Naves e Pierucci deixaram importante legado para as humanidades

Comecemos, pois, a retrospectiva do ano pelas perdas. Nesse sentido, o ano foi triste para as ciências humanas. Em abril, a comunidade acadêmica brasileira lamentou o falecimento do antropólogo Gilberto Velho (1945-2012). No mesmo mês, outro golpe: a antropologia nacional perdeu Santuza Naves (1952-2012). Em junho, morreu o sociólogo Antônio Flávio Pierucci (1945-2012). Os três, cada qual com seu foco de pesquisa, deixaram importante legado para as humanidades.

Velho é considerado por muitos o mestre da antropologia urbana brasileira. À época de sua morte, era titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ. O falecimento do antropólogo rendeu ao longo do ano uma série de textos e encontros que o homenagearam e debateram a sua obra.

Reveja o vídeo em que Renato Lessa, cientista político e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje, lamenta a perda de Gilberto Velho, enaltece o seu trabalho e comenta a relação do antropólogo com o ICH.

Em sua coluna de maio na CH On-line, o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte lamentou a morte do seu colega no Museu Nacional, deixando registrada a importância do seu companheiro de profissão. No mesmo texto, Duarte registra seus pêsames pela perda de outra colega, Santuza Naves, que havia sido orientada no mestrado por Velho. A socióloga é tida como uma das principais pesquisadoras no campo da música popular brasileira.

Quando a comunidade acadêmica ainda estava de luto pelo falecimento de Gilberto Velho e Santuza Naves, morreu o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, especialista em filosofia e teologia da Universidade de São Paulo. Entre diversos trabalhos publicados pelo pesquisador estão os livros de referência A realidade social das religiões no Brasil e Igreja: contradições e acomodação. Tanto Velho quanto Pierucci foram homenageados no encontro deste ano da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).

Ainda na seara das perdas, a mais sentida internacionalmente nas ciências humanas foi a do historiador Eric Hobsbawm (1917-2012), que morreu em outubro. O antropólogo José Sérgio Leite Lopes escreveu na CH On-line sobre o imprescindível legado de Hobsbawm, que ajudou, com seus mais de 30 livros, a construir a visão dos acontecimentos mais importantes dos séculos 19 e 20.

Ameaça de suicídio

Outras ‘mortes’ estiveram na pauta de debate dos cientistas sociais. Dessa vez, a morte autodeclarada de 170 homens, mulheres e crianças do grupo indígena guarani-kaiowá, que tiveram, em outubro, ordem de despejo decretada pela Justiça de Naviraí (MS). Os indígenas estavam acampados às margens do rio Hovy, à espera da legitimação de suas terras de origem, hoje ocupadas por fazendeiros e pistoleiros. Mas como assim ‘morte’? É que os guaranis-kaiowás – que na luta por suas terras ao longo dos anos já foram atacados e assassinados – escreveram carta endereçada às autoridades brasileiras em que diziam ser melhor a Justiça Federal decretar, em vez da expulsão, a “dizimação e extinção total [da etnia]”.

A condição dos indígenas se tornou pública, começou a ser disseminada pelos meios de comunicação e, sobretudo, nas redes sociais, espaço em que muitos usuários passaram a adotar ‘Guarani Kaiowa’ como sobrenome.

Manifestação
Ato a favor da causa guarani-kaiowá realizado em Porto Alegre. Indígenas ganharam raro apoio de jovens dos centros urbanos. (foto: Flickr/ percursodacultura – CC BY-SA 2.0)

A mobilização social, que teve direito a protestos e passeatas em centros urbanos, deu resultado e o Governo Federal acenou para o diálogo com as lideranças indígenas. O debate é longo e deve se estender ao ano que vem.

A Associação Brasileira de Antropologia, da qual Luiz Fernando Dias Duarte é vice-presidente, discute atentamente a questão. À CH On-line o antropólogo declarou: “Estamos sempre lutando para tentar evitar o pior destino para os indígenas”.

Continuidade nos EUA, recuo no Oriente Médio

2012 foi também um ano de eventos relevantes na política internacional. Nos Estados Unidos, Obama se reelegeu, fato que a historiadora e colunista da CH On-line Keila Grinberg atribuiu a duas razões: à fraqueza do candidato republicano Mitt Romney e à falência de certas ideias desse partido. “A reeleição de Obama reafirma a vontade do povo norte-americano de enfrentar democraticamente os desafios internos; é uma rejeição, por exemplo, ao plano de endurecimento republicano dos benefícios na saúde implementados por Obama”, afirmou Grinberg.

Obama
A foto de Obama e de sua mulher, Michelle Obama, postada pelo presidente no Twitter no dia de sua vitória eleitoral foi a mais compartilhada da história do microblogue e também do Facebook. (foto: reprodução)

Se nos Estados Unidos o clima foi de continuidade, no Oriente Médio houve ruptura. No ano passado, a primavera árabe, apesar da violência em alguns países, deu esperança de que uma nova forma de tratar conflitos seculares na região estaria nascendo. Mas neste ano, diversos conflitos na região, com milhares de mortes, depuseram contra essa ideia, com destaque para a Guerra Civil na Síria, que já deixou mais de 30 mil mortos, e para o recente conflito entre Israel e Hamas. “A disputa pelo poder foi mais violenta em 2012; para quem esperava que algo fosse melhorar, foi um ano de frustração”, ressaltou a historiadora.

Investigação e julgamento

Na política nacional, destacamos dois acontecimentos: o começo dos trabalhos da Comissão da Verdade, formada para investigar as violações dos direitos humanos ocorridas durante o regime militar, e o julgamento no Supremo Tribunal Federal do processo do mensalão, em que 25 réus foram acusados de contribuir, de alguma forma, para a compra de votos no Congresso Nacional durante os três primeiros anos de governo do ex-presidente Lula.

Tudo indica que ambos os eventos ainda serão discutidos no decorrer do ano que vem. Cassação de mandatos e execução das sentenças no caso do mensalão e continuação das investigações no caso da Comissão da Verdade. Sobre a comissão, aliás, destacamos dois textos: o de Renato Lessa, publicado na revista CH de junho, e o de Keila Grinberg, em sua coluna de outubro.

História para historiadores

Outro fato importante no Brasil, agora na área de pesquisa e educação, foi a aprovação pelo Senado Federal da regulamentação do ofício de historiador. Keila Grinberg, na sua coluna de dezembro na CH On-line, comentou o projeto de lei, que na prática prevê que a profissão seja exercida apenas por diplomados em cursos de graduação, mestrado ou doutorado em história.

Sobre o tema, Grinberg escreveu: “Quando penso no assunto, oscilo. A princípio, sou contra regulamentações, amarras, prescrições. Ao mesmo tempo, sobretudo em um país em que o Estado é o grande empregador, resistir à regulamentação é perder oportunidades de ter historiadores trabalhando em instituições como arquivos e museus. O problema parece insolúvel: se não podemos acabar com as regulamentações das profissões, então regulemos a nossa. Mas, quanto mais regulamos, mais longe estamos de nos livrar das regulamentações”.

Língua: ciganos e para(o)limpíada em debate

O ano também foi de Jogos Olímpicos e – a novidade – Paralímpicos. A queda do tradicional termo paraolímpico, junção do prefixo de origem grega para (de paraplegia) com o adjetivo ‘olímpico’, causou grita de gramáticos e linguistas, dos mais conservadores aos mais liberais. A explicação do órgão que solicitou a mudança, o Comitê Paralímpico Internacional (já com a nova grafia), é a padronização mundial do tempo paralympic, como é a expressão em inglês.

Possenti: “Essa mudança para paralímpico é uma imposição econômica, uma imposição do mercado; como questão linguística e até gramatical, não faz o menor sentido”

“Essa mudança é uma imposição econômica, uma imposição do mercado; como questão linguística e até gramatical, não faz o menor sentido”, explicou o linguista e colunista da CH On-line Sírio Possenti, enfatizando que, se alguma mudança tivesse de ser realizada, o natural seria cair – como manda a tradição da língua – a primeira vogal de ‘paraolímpico’, formando assim a nova palavra ‘parolímpico’. Isso já ocorre, por exemplo, em palavras como hidrelétrica (de hidroelétrica).

Ainda não se sabe se o ‘paralímpico’ vai vingar nos próximos anos. A esperança da maioria dos estudiosos contrários ao termo está no fato de o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o Volp, ainda não ter incluído o termo na sua versão digital, e a presidente Dilma ter decretado que, em documentos oficiais, o uso de paraolímpico continua valendo.

Outra palavra que causou polêmica foi ‘cigano’. Dessa vez, a confusão foi em função de uma ação do Ministério Público (MP) para retirar de circulação, suspender a tiragem, venda e distribuição das edições do Dicionário Houaiss que contivessem expressões pejorativas referentes aos ciganos. Tudo em razão das entradas no verbete que diziam que ciganos poderiam ser aqueles que trapaceiam, burlam, têm apego a dinheiro, são sovinas etc.

Verbete 'cigano'
Após ação do Ministério Público, o verbete ‘cigano’ ganhou no ‘Dicionário Houaiss’ uma explicação sobre a origem de acepções da palavra consideradas negativas. (imagem: reprodução)

O caso ganhou repercussão na mídia – tendo sido a ação condenada pela maioria dos estudiosos – e, por um breve período, o verbete ‘cigano’ sumiu da versão on-line do Houaiss. Sírio Possenti opinou sobre a questão em sua coluna na CH On-line: “Diversas manifestações bastante óbvias na mídia tentaram fazer com que o representante do MP entendesse que o dicionário é apenas um registro mais ou menos completo. Dicionário não inventa palavras, não inventa os sentidos das palavras, não incentiva uso de palavras em sentidos desabonadores. Mas também não condena palavras nem sentidos”.

Hoje, o verbete conta com explicação mais detalhada da tradução pejorativa da palavra, chamando-a de “xenófoba”, “preconceituosa” e “errônea”. O Instituto Houaiss já apresentou a sua defesa e o processo ainda corre na Justiça. Como boa parte dos acontecimentos do ano, que estão longe de serem fatos pontuais marcados na história, o desfecho deve acontecer, quiçá, em 2013.

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line