Pense rápido: a quantos filmes brasileiros você já assistiu com protagonistas negros? Se excluirmos dessa lista os que tenham como tema a pobreza, a favela e o tráfico de drogas, quantos sobram? Bem, esse é apenas um dos sintomas da permanência do racismo na sociedade brasileira. Mais de um século após a abolição da escravidão, o projeto Passados Presentes visa ampliar o leque de representação e de identificação da cultura negra, para que esta não se restrinja à narrativa de submissão e enfatize o histórico de lutas e a intensa produção cultural que sobreviveu, apesar de toda repressão.
Para isso, a ideia é divulgar a história da escravidão, da abolição e do período pós-abolição, contada do ponto de vista dos descendentes de escravos, e estabelecer pontos de memória para ajudar a construção dessa narrativa. Liderado por duas historiadoras da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hebe Mattos e Martha Abreu, e uma da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Keila Grinberg, o projeto reúne iniciativas como exposições e um aplicativo para dispositivos móveis, que buscam identificar, no estado, locais de relevância para a história da escravidão e do tráfico negreiro.
Duas exposições já foram inauguradas. A mais recente, aberta ao público em setembro, fica no Quilombo de São José, em Valença. Formada no século 19 por descendentes de escravos da antiga Fazenda São José, a comunidade teve grande importância nas lutas pela abolição. A exposição ali montada, que inclui visitas ao terreiro do jongo e ao Museu da Casa Quilombola, relembra fatos importantes de sua história, em textos, fotos e objetos.
Antes dela, a primeira exposição do projeto foi inaugurada em julho deste ano, em Pinheiral, ao lado do Parque das Ruínas da cidade – uma antiga construção que abrigava a sede de uma importante fazenda de café. No Quilombo do Bracuí – região de Angra dos Reis que, no passado, era um porto ilegal de entrada de africanos escravizados, mesmo depois das leis que proibiam o tráfico –, a mostra será inaugurada em novembro.
Elaborado como um guia para a visita às exposições, mas que também pode ser usado a distância para quem deseja saber mais sobre os locais, o aplicativo gratuito Passados Presentes, lista, ainda, mais de 30 locais de memória nas comunidades quilombolas e no centro da cidade do Rio de Janeiro. Os pontos marcados no aplicativo – que vão de um pé de jequitibá em São José da Serra a locais de prática do jongo em Pinheiral e Bracuí – foram levantados com a ajuda dos quilombolas, descendentes dos últimos africanos escravizados que viveram no estado.
Memória preservada
Hebe Mattos vem realizando entrevistas no quilombo de São José da Serra desde a década de 1990. Nos anos 2000, com Martha Abreu, ampliou a pesquisa pelo Vale do Paraíba. Parte do material coletado, que ultrapassa 300 horas de gravação, foi compilado em quatro documentários, Memórias do Cativeiro (2005), Jongos, Calangos e Folias (2007), Versos e Cacetes (2009) e Passados Presentes (2011).
O projeto atual, além de pesquisar e divulgar a cultura e história afro-brasileira, tem como objetivo ser uma forma de articulação das comunidades quilombolas e jongueiras. “A ideia é divulgar essa história e criar condições para que as comunidades que mantêm essa memória possam criar caminhos de sustentabilidade”, pontua Abreu. Apenas três meses após a inauguração, a exposição em Pinheiral já dá sinais da repercussão positiva do projeto, com número crescente de visitantes.
Capítulo esquecido da história
Segundo as pesquisadoras, o período pós-abolição da escravatura, isto é, a partir de 1888, ainda era uma lacuna na historiografia brasileira quando elas começaram a estudar a respeito. Não se falava muito da trajetória dos escravos a partir da Proclamação da República (1889) e, para preencher esse vazio, as estudiosas decidiram resgatar memórias da época do cativeiro transmitidas de geração em geração pelos integrantes das comunidades quilombolas remanescentes.
O conteúdo das entrevistas revela a valorização dos mais velhos e as relações de solidariedade no interior das comunidades. Outro aspecto importante da pesquisa é a inserção dos descendentes dos escravos na historiografia, o que tem impactos muito positivos na autoestima da comunidade. “Nós vemos jovens orgulhosos do passado, da história. Eles contam a história independentemente dos historiadores”, destaca a estudiosa.
Passados Presentes é, portanto, uma forma de oferecer ao público outras versões da história do país. Para Abreu, esta é uma oportunidade de se produzir conhecimento sobre o tema, com destaque para o período pós-abolição. Como formadora de professores de história na UFF, ela ressalta a importância de se dar ênfase às formas de luta dos escravos contra a escravidão e também após a abolição. “Combater a história única, a que reforça imagens de subordinação, inferiorização e passividade da população afrodescendente, deve ser o maior objetivo dos professores na reeducação das relações raciais, para alunos negros e brancos. Precisamos oferecer para os alunos negros formas mais positivas de identificação e valorização de sua história”, resume.
Iara Pinheiro
Instituto Ciência Hoje/ RJ