Navegar é preciso; poluir é desnecessário. Nos laboratórios do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM), da Marinha do Brasil, em Arraial do Cabo (RJ), a Ciência Hoje On-line garimpou uma excelente notícia: o engenheiro químico e capitão-de-fragata William Romão está desenvolvendo uma tecnologia inédita que pode resultar na primeira tinta anti-incrustante ecologicamente segura e industrialmente viável.
O segredo, quem diria, está nas esponjas do mar. “São seres fascinantes; estão entre os mais primitivos organismos da Terra”, ensina o pesquisador. “E é notório que as esponjas não sofrem incrustação.” Na sua história de 940 milhões de anos, elas se adaptaram de modo a produzir tipos especiais de glicerofosfolipídeos, compostos que as mantêm livres de cracas ou bichos pegajosos e oportunistas.
Eis que pesquisando esponjas das espécies Amphimedon viridis, Aplysina fulva, Arenosclera brasiliensis, Darwinella sp e Geodia corticostylifera – todas coletadas na costa brasileira – o engenheiro do IEAPM conseguiu prospectar as substâncias anti-incrustantes produzidas por esses animais e sintetizá-las em laboratório.
Mas havia um problema. “Com um quilo de esponjas, conseguimos míseros dois miligramas dos glicerofosfolipídeos que nos interessavam”, conta Romão. Nesse ritmo, a equipe precisaria coletar milhares de esponjas marinhas para produzir alguns poucos litros de tinta. Inviável.
Após quebrar um pouco a cabeça, Romão conseguiu, em parceria com o Laboratório de Avaliação e Síntese de Produtos Estratégicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolver um método inovador capaz de sintetizar a tal substância anti-incrustante em escala industrial sem necessidade de extrativismo nos mares. Em vez de esponjas, Romão descobriu que poderia usar… Lecitina de soja!
Rico em óleos essenciais, fósforo e nitrogênio, esse insuspeito subproduto da agricultura mostrou-se ideal para a síntese química das substâncias anti-incrustantes desejadas pelo engenheiro do IEAPM. “É uma matéria-prima abundante e barata”, diz.
As cracas que se cuidem
Com alguns truques de engenharia química e uma boa visão de mercado, o grupo conseguiu preparar razoável quantidade de material anti-incrustante – que, para testes, foi incorporado em formulações de tintas comerciais da empresa AkzoNobel, uma das líderes mundiais do comércio de tintas marítimas.
“Testamos a nova formulação em placas de metal na baía de Guanabara (RJ) por doze meses; os resultados foram excelentes”, comemora o pesquisador. O próximo passo da equipe é aprofundar estudos sobre a viabilidade econômica do novo método.
Breve noção de valores: um balde de 20 litros de uma boa tinta anti-incrustante pode custar quase seis mil reais – em geral, a pintura deve ser refeita anualmente. A principal matéria-prima usada hoje é o cobre, que pode chegar a 60% do peso total da tinta e é vendido a cerca US$10 o quilo. “Lecitina de soja custa um décimo disso”, calcula o engenheiro.
Se a viabilidade econômica dessa promissora tecnologia se confirmar, uma nova tinta poderá estar no mercado dentro de poucos anos. Será uma tecnologia inédita no mundo: a primeira tinta anti-incrustante não agressiva aos ecossistemas marinhos.
Laureado com o Prêmio Petrobrás de Tecnologia, o estudo de William Romão já havia rendido duas patentes no Brasil. E acaba de render uma terceira – desta vez, nos Estados Unidos. Foi aprovada em dezembro passado, e sua titularidade é uma parceria entre o IEAPM, a UFRJ e a Universidade Federal Fluminense (UFF). É a mais recente tecnologia anti-incrustante à base de biocida natural; e a patente é o primeiro passo para que uma nova geração de tintas marítimas seja viabilizada em escala industrial.
Todo otimista, no entanto, deve manter pés no chão. “Para ser aprovada, uma nova tinta deve passar pelo aval de 13 associações internacionais que regulam o setor”, lembra o biólogo Ricardo Coutinho, também do IEAPM. Registrar um novo material anti-incrustante pode custar milhares de euros; e o processo pode levar de cinco a dez anos em tramitação.
Há outro entrave: “O fato de uma substância ser natural não significa que ela não possa ser danosa ao ecossistema quando disseminada em maior escala”, reconhece Romão. Por isso, o projeto prevê estudos toxicológicos capazes de averiguar se os novos compostos químicos – apesar de naturais e biodegradáveis – serão ou não prejudiciais quando usados em quantidades mais expressivas.
Horizonte tecnológico
O banimento do TBT (composto usado nas tintas anti-incrustantes), em 2008, forçou a indústria náutica a buscar alternativas – mas o tiro saiu pela culatra. Pois, para evitar o uso do famigerado contaminante, os fabricantes de tinta precisaram voltar no tempo e recorrer aos antigos biocidas à base de cobre. “O cobre é um fitotóxico potente, mas não resolve, sozinho, o problema da bioincrustação”, diz o oceanógrafo Marcos Fernandez, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Para funcionar a contento, ele precisa ser associado a outros biocidas – que potencializam sua ação. São os chamados co-toxicantes, ou boosters. Há pelo menos 16 compostos licenciados para essa finalidade, incluindo organoclorados, organometálicos, carbamatos e triazinas. Segundo seus fabricantes, são menos agressivos do que o TBT. O problema, segundo Fernandez, é que esses compostos podem afetar organismos não alvos, com efeitos ambientais de difícil previsão. “Logo, essa abordagem pode até resolver problemas de bioincrustação, mas não resolve o problema da poluição das águas.” Na verdade, o agrava.
Existem duas novas tecnologias que dispensam o uso de biocidas. Uma delas é o revestimento antiaderente do casco da embarcação. Já está em uso comercial há alguns anos, e funciona bem desde que o barco seja veloz – deve navegar em velocidades acima de 15 nós. Apesar de eficaz, esse tipo de revestimento é um tanto frágil. Qualquer impacto com objetos que estejam flutuando nas águas pode facilmente danificá-lo.
A outra tecnologia isenta de compostos tóxicos é o revestimento do casco com estruturas de microrrelevo. Elas repelem fisicamente a fixação de organismos. Entretanto, essa alternativa ainda não está em uso comercial.
Caminho do meio
Diante da sinuca tecnológica e ambiental, Coutinho aposta em uma saída mais prática. Em vez de visionar horizontes distantes com o desenvolvimento de uma nova tecnologia isenta de metais pesados, ele acredita que o caminho mais sensato, por ora, seja simplesmente melhorar a qualidade das tintas já existentes no mercado – de modo que suas formulações, ainda que com metais pesados, não os permitam escapar para os ecossistemas marinhos. Como? “Não sabemos ainda, mas é exatamente o que estamos investigando”, diz o biólogo. “Estamos trilhando esse caminho em parceria com a União Europeia”, antecipa. “Resultados preliminares devem ser discutidos em breve.”
Seja qual for o cenário, porém, uma coisa parece certa: “Os grandes fabricantes de tintas não estão preocupados em mudar o cenário atual”, pondera Coutinho. “Pois não se mexe em time que está ganhando.”
Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line