Sobre hidrelétricas e mercúrio

Hidrelétricas na Amazônia: poucos assuntos despertam tantas paixões e intrigas. Soberania energética ou acinte ao bom senso? Seja qual for seu juízo, é certo que a ladainha ambiental está em clara rota de colisão com o discurso frágil do desenvolvimentismo caolho.

Impactos sociais tremendos; extermínio da biodiversidade; alterações críticas no curso das águas. São apenas alguns dos itens sentenciados no rol de condenações da interminável contenda. No calor do debate, porém, nenhum dos lados parece ter dado atenção a um singelo detalhe: áreas alagadas são, também, territórios férteis para o agravamento dos quadros de contaminação por mercúrio.

Fácil entender o porquê. Quando se alaga uma área que outrora abrigava floresta, as águas passam a registrar altíssimas concentrações de matéria orgânica – decomposta a partir dos restos apodrecidos da fauna e flora inundadas.

“Estamos reproduzindo em laboratório experiências para simular o que poderá ocorrer quando essa área for de fato alagada. E o cenário não é dos bons”

É o cenário ideal para que o mercúrio – estocado nos solos em sua forma inorgânica – seja liberado ao ecossistema e convertido em metilmercúrio – a forma orgânica do elemento, que é, na verdade, sua manifestação mais tóxica.

“O metilmercúrio se acumula nos tecidos dos organismos aquáticos e, eventualmente, chega ao ser humano”, explica o químico Vinícius Gomes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ele vem estudando os impactos que o mercúrio deverá causar no reservatório da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia.

“Estamos reproduzindo em laboratório experiências para simular o que poderá ocorrer quando essa área for de fato alagada”, diz Gomes. “E o cenário não é dos bons.”

Jirau e a bomba-relógio

Obras a todo vapor. Se os planos do Governo Federal se concretizarem, a Usina Hidrelétrica de Jirau deverá operar a todo vapor a partir de 2016. Está sendo instalada no curso do rio Madeira, a 120 km de Porto Velho (RO).

O reservatório deverá alagar mais de 250 km2. É uma área e tanto para que o mercúrio inorgânico sofra os processos de metilação e contamine a fauna local. Milhares de famílias ainda dependerão da pesca para sobreviver – e consumir peixes contaminados por metilmercúrio poderá ser o primeiro passo para desencadear um processo de intoxicação mercurial em proporções ainda desconhecidas. A sorte estará lançada.

Rio Madeira
Rio Madeira, em Porto Velho (RO). A bacia do Madeira, assim como a do Tapajós, é um dos principais redutos do garimpo artesanal de ouro no Brasil. Comunidades locais apresentam quadros preocupantes de contaminação por mercúrio. (foto: Wilson Dias/ ABr – CC BY 3.0)

Segundo o químico da Unesp, a situação já é crítica e tende a se agravar em função do garimpo de ouro na região – trabalho não raras vezes exercido sob os auspícios da negligência, pois, apesar dos esforços, o mercúrio ainda é descartado de forma, digamos, um tanto despudorada.

“No quesito contaminação, remediar o cenário atual é praticamente impossível”, afirma Gomes. “Tudo que podemos fazer é parar de lançar mais mercúrio aos ecossistemas”, recomenda o químico. Ele ironiza: “na química ambiental infelizmente é assim: um trabalho é bom quando prevê que irá acontecer algo ruim”.

Caixa-preta

O mercúrio é apenas mais um dos ingredientes que pode apimentar o debate em torno dos polêmicos megaprojetos de hidrelétricas no Brasil. Mas nunca é demais lembrar: a discussão se insere em uma trama ainda mais ampla, que transcende aspectos técnicos ou científicos e tangencia tramoias políticas ainda passíveis de melhor averiguação.

A discussão se insere em uma trama ainda mais ampla, que transcende aspectos técnicos ou científicos e tangencia tramoias políticas ainda passíveis de melhor averiguação

Célio Bermann que o diga. Pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), ele é um dos mais respeitados especialistas em política energética no Brasil. Em recente entrevista, colocou o dedo na ferida ao discorrer sobre as parcerias espúrias que se disseminam nas oligarquias que regem o setor energético brasileiro.

Bermann também deu uma palhinha na CH 297, publicada em outubro passado, colocando alguns pingos nos is na reportagem ‘Hidrelétricas: o mito da energia limpa’ (disponível, para assinantes, no Acervo Digital da CH).

Em tempo: Marina Silva também não deixou barato. “A usina de Belo Monte, ao secar a Volta Grande do rio Xingu, expõe ao sol da opinião pública algo mais que o limo das pedras”, escreveu recentemente, alfinetando o ímpeto taciturno das grandes mineradoras que há tempos estão de olho nas riquezas da região. Segundo Marina, trata-se de “uma corrida do ouro silenciosa e oculta da opinião pública”.

Este é o quinto texto da série ‘Rastros do mercúrio‘, publicada esta semana na CH On-line. Confira aqui todos os textos.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ