Teia de orgulho ferido

Segredos da tribo, o novo documentário do cineasta José Padilha (de Tropa de elite), produzido pela BBC, começa de maneira tranquila: falando sobre os estudos do antropólogo norte-americano Napoleon Chagnon com os ianomâmi. Chagnon escreveu o que muitos consideram o tratado definitivo sobre a etnia amazônica.

Mas já nos primeiros minutos do filme, essa noção começa a ser questionada pelos depoimentos de seus adversários acadêmicos, como o também norte-americano Kenneth Good, que acusa Chagnon de fabricar dados para dar suporte à sua hipótese de que os ianomâmi são um povo naturalmente violento.

A pesquisa antropológica dessa nação nos anos 60 e 70 parece estarenvolta numa teia de disputa acadêmica, orgulho ferido e quase completodescaso pelo bem-estar dos índios

Logo se percebe que o próprio Good, que também estudou a etnia, teve um comportamento longe de ético ao desposar uma adolescente ianomâmi e levá-la para viver nos Estados Unidos. De fato, o filme mostra que a pesquisa antropológica dessa nação nos anos 60 e 70 parece estar envolta numa teia de disputa acadêmica, orgulho ferido e quase completo descaso pelo bem-estar dos índios.

Isso culmina (ou atinge seu ponto mais baixo) com a revelação que o linguista francês Jacques Lizot, protegido do célebre Claude Lévi-Strauss, abusava sexualmente de meninos e adultos ianomâmi e que o pesquisador norte-americano James Neel, com auxílio de Chagnon, teria amplificado um surto de sarampo nas aldeias, matando muito mais índios do que a doença sozinha teria conseguido.

 

Teia de orgulho
Aqui, um índio ianomâmi é tratado por James Neel, que mais tarde foi acusado de ter amplificado um surto de sarampo nas aldeias (foto: divulgação).

Cientistas com desvios de conduta não são novidade – o próprio filme é baseado no livro de 2000 Trevas no Eldorado, do jornalista norte-americano Patrick Tierney, que aparece no documentário. Mas o filme dá uma nova dimensão para a questão da falta de ética: esses pesquisadores não maquiaram seus dados ou alteraram gráficos simplesmente – eles levaram dor, sofrimento e morte a um povo inocente. Chagnon chegou a ser acusado de genocídio. É curioso também que sejam antropólogos envolvidos nesse imbróglio, já que o título de cientista louco é geralmente reservado a geneticistas e afins.

Cientistas com desvios de conduta não são novidade

Mas antes que o leitor saia de sua casa em busca de sangue, convém avisar que o filme faz um bom trabalho de equilibrar as duas versões dos fatos, dando oportunidade aos acusados de se defenderem, embora seja difícil não acreditar nos depoimentos dos ianomâmi vítimas de Lizot. No fim, Segredos da tribo é mais uma prova de que cientistas são humanos e estão sujeitos às mesmas influências e fraquezas que todos nós. Infelizmente.


Fred Furtado
Ciência Hoje / RJ

O repórter assistiu a Segredos da tribo em abril, no festival É Tudo Verdade, no Rio de Janeiro. O filme ainda não tem previsão de estreia no Brasil.